Um gênio na militância política e na arte: de Franca para o mundo.
A descoberta das Américas inaugura o que foi definido como modernidade, um novo formato sócio histórico de dominação a partir da Colonialidade do Poder e um traçado expansionista eurocêntrico, que alterou o padrão mundial das relações sociais de produção, introduzindo a ideia de raça, de classificação social e a presença significativa de três elementos na divisão social do trabalho: a dominação, a exploração e o conflito (Quijano, 2005).
A diáspora negra ou africana que resultou desse processo colonial, suscitou a importância de pensar uma identidade comum para pessoas dispersas por todo o mundo, que sofreram violência e que precisam reconstruir uma base cultural comum em um novo contexto, para além do atlântico, como na Metáfora do Atlântico Negro de Paul Gilroy.
Herdeiro deste contexto político e cultural, seja na militância política e na arte, o grande marco da obra de Abdias Nascimento está em seu projeto político de sociedade, que é a expressão e a defesa de uma filosofia política afro brasileira.
De família humilde, nasceu em Franca, no interior do Estado de São Paulo, em 14 de março da 1914, neto de africanos escravizados, filho de pai sapateiro e mãe doceira, os quais sempre devotou muito orgulho. Poeta escritor, dramaturgo, teatrólogo, artista plástico, pesquisador, professor universitário, economista, notadamente um dos maiores expoentes da cultura negra de sua geração, político e ativista defensor dos direitos humanos no Brasil e no mundo, valendo a sua indicação ao Prêmio Nobel da Paz de 2010.
Fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado (MNU) com atuações em movimentos nacionais e internacionais como a Frente Negra Brasileira (primeira organização de ativismo negro no país ocorrido em 16/09/1931), a Negritude e o Pan-Africanismo (ideologia que propõe a união de todos os povos da África potencializando a voz do continente africano no âmbito internacional).
Referência internacional contra o racismo, a discriminação e a luta pelo reconhecimento do protagonismo do povo negro e a integração dos afrodescendentes sem restrições, com garantias assegurada na legislação brasileira. Não obstante a notoriedade internacional e o seu ativismo político, no Brasil, chegou ao Senado e a Câmara de Deputados, na condição de suplência, o que não ofuscou a importância de seus mandatos, apenas revelou a dificuldade, na época, do povo negro ocupar tais espaços.
Os treze anos de exílio nos Estados Unidos e Nigéria resultaram na possibilidade de desenvolver a sua intelectualidade, tendo como professor participado de inúmeros eventos tanto na África como nos Estados Unidos, introduzindo a população negra do Brasil em eventos internacionais africanos, cuja representação das américas Central e do Sul inexistia até então.
Destaca-se em sua trajetória a participação no 2º Congresso de Cultura Negra das Américas realizado no Panamá (1980), apresentando o quilombismo “como legado de mobilização política da população afrodescendente nas Américas, baseado na sua própria experiência histórico – cultural”. Em sua tese, Nascimento articula uma proposta afro-brasileira para o Estado Nacional contemporâneo, um Brasil multiétnico e pluricultural, baseados em medidas e princípios consolidados no ABC do Quilombismo.
Assim define Nascimento (2009, p. 203):
A multiplicação dos quilombos fez deles um autêntico movimento amplo e permanente. Aparentemente um acidente esporádico no começo, rapidamente se transformou de uma improvisação de emergência em metódica e constante vivência dos descendentes de africanos que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema escravista.
Ele atribuiu ao quilombismo a característica de movimento político de negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, baseado em novas relações sociais de produção, a exemplo da República de Palmares e outros Quilombos a partir do século XVI, com modelo econômico oposto ao colonial, propriedade coletiva da terra fortalecendo uma economia de base comunitário-cooperativista, onde a propriedade privada da terra é abolida, o trabalhador não é explorado pelo sistema produtivo, num projeto de Sociedade soberana, inspirado no bem viver.
Traz um quilombismo como fenômeno pautado em valores culturais africanos, no multiculturalismo, igualitarismo democrático, cuidado ao meio ambiente numa perspectiva de emancipação do povo negro, respeito a ancestralidade e antecipação na abordagem das relações raciais.
Assim, cada vez que o povo negro se insurge contra a discriminação e o não reconhecimento da sua identidade e o respeito a sua cultura, o quilombismo se faz presente, nos diversos espaços e organizações que distam da diáspora negra aos dias atuais.
Para Nascimento (2009):
O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso, facilitando sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também podiam assumir modelos de organizações permitidas ou toleradas frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo.
Quase uma década após o seu falecimento, a intensidade em que Abdias Nascimento viveu seus 97 anos, é um legado para futuras gerações e sempre suscita a necessidade do povo negro em seus movimentos e enfrentamentos diários fortalecer, politizar e dar conteúdo popular as causas em prol da justiça, do aprofundamento ao discurso e a prática democrática no combate ao racismo e a promoção da igualdade racial.
Referências:
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. 2. ed. São Paulo: Editora 34, Rio de Janeiro: Editora Cândido Mendes, Centro Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
NASCIMENTO, E. L. (Org.). Afrocentricidade: Uma abordagem inovadora. São Paulo: SANKOFA 4, Matrizes Africanas da Cultura Brasileira, 2009.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
SANTANA, Stela Gleide Oliveira. Irmandade do Rosário dos Pretos Pelourinho: quilombismo como viés de resistência cultural. Salvador 2020. 99fls