Entre o blackface e o racismo religioso

O termo falácia, no contexto científico e filosófico, refere-se a um erro de raciocínio que distorce e manipula a verdade, com a intenção de enganar ou confundir. Trata-se de uma argumentação que, à primeira vista, pode parecer lógica, mas, ao ser analisada mais profundamente, revela-se insustentável ou enganosa. Falácias são frequentemente usadas para legitimar ideias preconcebidas ou manipular percepções, dificultando uma análise crítica e racional dos fenômenos.

Ao aplicar o conceito de falácia ao lançamento do CD e DVD Negalora: Íntimo, de Claudia Leitte, em 2012, podemos vê-lo como uma falácia de identidade. Esse produto cultural disfarça uma realidade racista e colonialista por meio de uma estética superficial e distorcida. Mais do que um simples resgate das raízes africanas, ele representa uma encenação de falsificação cultural, refletindo as contradições de uma sociedade brasileira que se considera pós-colonial, mas que ainda mantém os vestígios da escravidão como meros adornos decorativos.

Essa perspectiva é corroborada pelas análises de Cassiano e Rocha (2024), que, com base nas teses de Clóvis Moura (1992), argumentam que o Brasil continua imerso em práticas de apropriação cultural. O termo “negalora”, em vez de simbolizar uma retomada genuína das raízes africanas, surge como um claro sintoma do racismo estrutural. Ele disfarça a complexidade da cultura negra, em nome de uma falsa ideia de democracia racial, deslegitimando e trivializando as culturas africanas e afro-brasileiras.

Segundo o filósofo Stuart Hall (1997), a apropriação cultural ocorre quando um grupo dominante utiliza elementos de uma cultura marginalizada, muitas vezes de forma desrespeitosa, para atender às suas próprias necessidades estéticas ou econômicas. No caso de Negalora, essa apropriação se manifesta na superficialização da identidade negra, que é estetizada sem um verdadeiro entendimento de seu significado e valor, perpetuando estereótipos e desrespeitando o patrimônio cultural africano.

Blackface e a trivialização da identidade preta

A prática do blackface, originada nos Estados Unidos no século XIX, está intimamente ligada às apresentações de minstrels, nas quais atores brancos pintavam seus rostos com tinta preta para criar caricaturas afro-americanas. Essas performances, embora consideradas um entretenimento popular da época, tinham o efeito de desumanizar e ridicularizar os pretos e afrodiaspóricos, consolidando uma visão negativa e submissa dos afrodescendentes na cultura ocidental. Através dessa representação, os estereótipos racializados eram profundamente enraizados na sociedade, contribuindo para a marginalização dos pretos.

De acordo com Roberta Girotto (2018), o blackface não apenas zombava dos pretos e seus descendentes, mas reforçava a estigmatização dessa população, perpetuando ideologias racistas que ainda persistem hoje. Girotto (2018) destaca que a prática continua a ser reinterpretada na cultura contemporânea, contribuindo para a manutenção de hierarquias raciais e o reforço de estigmas sociais.

Fonte: BBC de Londres / Fonte: Torres (2016)

Quando recontextualizado no Brasil, o blackface assume uma nova dimensão. A utilização dessa prática por figuras midiáticas, como a cantora Claudia Leitte, reforça a subordinação da população preta e afrodiaspórica a estereótipos consumidos por um público predominantemente branco, que, muitas vezes, carece de uma compreensão profunda das questões raciais. A encenação de lançamentos de discos ou outras manifestações culturais que remetem ao blackface vai além de uma simples questão de mau gosto; ela reflete as estruturas de poder no Brasil, que continuam a se apropriar da negritude sem jamais conceder-lhe voz, dignidade ou reconhecimento genuíno.

Sobre o exposto, o conceito de aculturação, conforme desenvolvido por Homi Bhabha (2005), surge aqui como uma chave analítica importante. Bhabha argumenta que a aculturação não deve ser vista como uma troca harmoniosa, mas como uma negociação desigual, onde as culturas dominantes impõem suas normas, enquanto as culturas subalternas são forçadas a se adaptar. O caso do/da “negalora”, portanto, exemplifica essa dinâmica de aculturação, transformando a cultura preta e de suas diásporas em mercadorias, desprovidas de complexidade histórica e social. A estética imposta pela cantora redefine a identidade afro-brasileira como algo “reconhecível” e “aceitável”, mas sempre subordinada ao olhar de uma sociedade que, embora se permita “jogar” com a estética preta e afrodiaspórica, jamais concede poder político ou econômico.

A democracia racial no Brasil, propagada por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (2006), nunca foi mais do que uma falácia, ocultando as desigualdades raciais que ainda atravessam a sociedade brasileira. A miscigenação, ao invés de promover a igualdade, consolidou a hierarquia racial, subalternizando os pretos e afrodiaspóricos em relação à classe dominante branca e europeizada. O conceito de/da “negalora” reflete essa continuidade de exclusão. Ao adotar esse termo, Leitte reforça a apropriação da identidade preta e sua redução a um estereótipo consumível, desprovido das lutas históricas das populações negras e da diáspora africana.

Como observa Silvio Almeida (2020) em Racismo Estrutural, o racismo no Brasil não é um acontecimento isolado, mas uma estrutura profundamente enraizada nas instituições sociais e culturais, que sustenta o privilégio branco e deslegitima as culturas afro-brasileiras. Ao se apropriar da estética do blackface e se autodenominar “negalora”, Leitte não abraça a cultura afro-brasileira, mas pratica um neocolonialismo cultural, utilizando a identidade preta e de suas diásporas sem permitir que ela seja vivida em sua totalidade e complexidade.

Racismo religioso

De acordo com o portal Brasil de Fato (2024), durante um show, Claudia Leitte causou polêmica ao substituir a letra de sua música “Caranguejo”, que originalmente fazia uma saudação a Iemanjá, para “Eu canto meu Rei Yeshua” (Jesus em hebraico). A alteração gerou críticas do público, que apontaram o gesto como um ato de racismo religioso. A substituição de uma divindade africana e afro-brasileira por uma figura cristã é, sem dúvida, um exemplo claro de violência simbólica contra as religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda, e exemplifica o racismo estrutural presente também no campo religioso.

Esse fato, como bem explica Silvio Almeida (2020) em Racismo Estrutural, não se limita ao racismo racial, mas se estende ao racismo religioso, caracterizado pela marginalização e deslegitimação das práticas religiosas africanas e afro-brasileiras em favor de tradições religiosas dominantes, frequentemente cristãs. Ao substituir Iemanjá – uma figura central na cosmovisão africana e afro-brasileira – por Yeshua, Leitte não apenas invisibiliza as crenças de matriz africana, mas também reafirma a estrutura de poder racial e religioso que subordina o cristianismo como sistema religioso único e universal, relegando as religiões africanas e afro-brasileiras a “relíquias folclóricas”. Este gesto não é um simples descuido, mas um reflexo do processo de apropriação religiosa e cultural, onde a identidade negra, na sua complexidade, é diluída em um discurso cristão hegemônico.

O racismo religioso, como elucidado por Almeida, é uma manifestação de poder que opera de forma simbólica, mas profundamente enraizada, ao deslegitimar religiões de origem africana e subordinar suas práticas às normas e valores do cristianismo dominante. Stuart Hall (2005) reforça essa perspectiva ao argumentar que as identidades culturais não são estáticas, mas sim um campo de disputa constante, onde grupos dominantes impõem suas representações e significados sobre os grupos subalternizados. A troca de Iemanjá por Yeshua não visa promover um diálogo inter-religioso ou de valorização da cultura africana e afro-brasileira, mas sim aprofundar a marginalização e o estigma dessas religiões, que continuam a ser tratadas como “exóticas” e “inferiores” dentro de um sistema de poder que privilegia a religiosidade cristã.

Conclusão

O lançamento do CD e DVD Negalora: Íntimo de Claudia Leitte, em 2012, não se trata apenas de uma tentativa superficial de abraçar uma identidade “híbrida”, mas sim de uma encenação grotesca de falsificação cultural. Este evento revela as contradições de um Brasil que se julga pós-colonial, mas que ainda reverbera os ecos da escravidão, disfarçados sob a fachada de uma democracia racial falaciosa. Ao adotar o termo “negalora”, Leitte não só trivializa a cultura preta e afrodiaspórica, mas a reduz a um estereótipo consumível, despojado de sua história, lutas e complexidade.

As falácias de uma “negalora” se tornam ainda mais evidentes na apropriação do blackface e na substituição de Iemanjá por Yeshua, dois gestos fundados em racismo estrutural e de uma violência simbólica inaceitável. A prática do blackface, um resquício de um passado colonial racista, continua a ser reinterpretada na cultura brasileira, não como uma forma de celebração, mas como uma reafirmação da subordinação da identidade preta. A troca de uma divindade africana e afro-brasileira por uma figura cristã, por sua vez, reflete um racismo religioso que marginaliza e invisibiliza as religiões de matriz africana, reforçando a supremacia cristã e negando a legitimidade das crenças afro-brasileiras.

Esses atos não são acidentais, mas parte de uma estrutura de poder racial e religioso enraizada, como argumentam Silvio Almeida (2020) e Stuart Hall (2005), que mantêm a exclusão e a subordinação das culturas e religiosidades negras. O Brasil, ao se apegar à ilusão de uma “democracia racial”, continua a estigmatizar e marginalizar a identidade negra e suas manifestações culturais, praticando um neocolonialismo cultural disfarçado de celebração. A apropriação da identidade afro-brasileira por Leitte, sem qualquer compreensão genuína de seu significado, reforça uma narrativa de dominação e exclusão, onde a cultura preta é consumida e diluída sem jamais ser respeitada em sua totalidade.


Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2020.
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