Subjetividades Negras, Autoconfiança e o Poder do Coletivo

Ao falar sobre as subjetividades de pessoas negras, especialmente mulheres, é impossível ignorar os caminhos históricos que moldaram essas identidades. Essas trajetórias estão profundamente entrelaçadas com dispositivos de racialidade e gênero, heranças do período colonial. Durante séculos, esses mecanismos foram usados para criar hierarquias sociais, classificando e subalternizando corpos negros. É como se o simples ato de existir fosse continuamente atravessado por experiências de exclusão e opressão.

Achille Mbembe nos ajuda a compreender como o colonialismo criou o conceito de “racialidade”, que classifica e subordina corpos negros. Ele argumenta que essa construção histórica define e limita subjetividades. Da mesma forma, Neusa Santos Souza aponta que a sociedade escravista brasileira associou a cor negra à inferioridade, afetando profundamente a psique das pessoas negras. Segundo Souza, a forma como nos percebemos está intimamente ligada às narrativas impostas pela sociedade. Assim, reconstruir uma identidade positiva passa pela desconstrução dessas narrativas opressoras.

Além disso, Kimberlé Crenshaw apresenta o conceito de interseccionalidade, que revela como diferentes formas de opressão — como racismo e machismo — se entrelaçam, criando experiências únicas de discriminação. Para mulheres negras, essa interseção é ainda mais evidente, influenciando diretamente sua autoestima e autoconfiança.

A autoconfiança, nesse contexto, vai além de uma questão individual: ela está profundamente conectada à forma como reconstruímos nossas identidades e nos reconhecemos como sujeitos. Neusa Santos Souza reforça que esse processo exige uma tomada de consciência sobre as forças históricas que moldaram as narrativas de inferioridade. Reconhecer a si mesmo, nesse sentido, é um ato de resistência e empoderamento.

Mas como cultivar essa autoconfiança? Aqui entram as ricas cosmovisões africanas, como as histórias (itans) das tradições Yoruba. Um itan, como o de Oxóssi — o caçador de uma flecha só —, nos inspira ao mostrar como a confiança e o apoio coletivo são fundamentais para superar desafios. Mesmo diante da descrença dos outros, Oxóssi confiou em si e contou com a força de sua comunidade, representada pelo cuidado de sua mãe. Ele não estava sozinho em sua jornada, e é isso que faz toda a diferença.

Essa conexão com a comunidade é central. Sobonfu Somé, do povo Dagara, nos lembra que o pertencimento a um grupo que valoriza nossas potencialidades é essencial para o fortalecimento da psique. A ausência de uma rede de apoio pode nos deixar vulneráveis, mas quando estamos cercados por pessoas que afirmam quem somos, podemos acessar nossa essência e expressar nossos dons de forma plena. Como Cida Bento coloca: “Qualquer grupo precisa de referenciais positivos sobre si próprio para manter sua autoestima e fortalecer sua identidade.”

Portanto, reconstruir nossas subjetividades é um processo coletivo. A autoconfiança não nasce isolada; ela é nutrida pelas relações que estabelecemos, pelos referenciais que cultivamos e pelas histórias que escolhemos contar sobre nós mesmos. Que essas reflexões nos inspirem a valorizar nossas raízes, fortalecer nossas comunidades e seguir confiantes no caminho do autoconhecimento.

Referências bibliográficas

  • BENTO, Cida. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
  • CRENSHAW, Kimberlé W. “Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero”. Estudos Feministas, ano 10, n° 1/2002, pp. 171-188.
  • MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
  • SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus Editora, 2003.
  • SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.