Num daqueles mistérios que só a literatura explica, Ivo Donayre tem a honra de conversar com Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, em um cenário que parece saído de um dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O tempo, sempre fluido e caprichoso, parece ter aberto uma fresta — uma brecha tão delicada quanto uma página amarelada pelo passar dos anos. Nela, o passado e o presente se encontraram em uma harmonia impossível, mas perfeitamente crível para os que amam as letras.
O Amarelinho, na Cinelândia, foi escolhido a dedo para a ocasião. Ali, ladeado pela Avenida Rio Branco, com o Obelisco ao fundo e cercado pelos guardiões do saber — a Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal —, o ambiente pulsava com histórias que nunca dormem. Não muito longe dali o Museu de Arte Moderna parecia observar silenciosamente o encontro improvável entre o repórter do presente e o gênio do passado.
Machado chegou pontualmente, como se o próprio relógio de Brás Cubas marcasse sua entrada. Vestia um terno impecável, seus olhos brilhavam com a vivacidade de quem ainda observa o mundo com o mesmo olhar sagaz e analítico. Ele não parecia surpreso com a viagem, tampouco com o fato de que um homem moderno o esperava em uma mesinha num ambiente imaginário misturando passado e futuro. Era como se ele soubesse que, em algum momento, seria convidado a voltar para uma conversa.
“Tempo e espaço, senhor Donayre,” começou ele, com a voz grave, mas suave, enquanto ajustava seus óculos de armação fina. “Esses são conceitos que a literatura sempre dobrou à sua vontade, não é mesmo?”
Ivo, inicialmente sem palavras, apenas sorriu, sentindo-se simultaneamente nervoso e honrado. Não era todo dia que se encontrava com um ícone da literatura. Menos ainda que ia compartilhar uma cerveja gelada com Machado de Assis.
“É verdade, senhor Assis,” respondeu, finalmente encontrando a voz. “A literatura nos permite transcender as limitações da carne e do calendário. Esta entrevista é a prova disso.”
Machado sorriu, um sorriso cheio de mistério e ironia, aquele que somente um criador de Capitus e Bentinhos poderia oferecer. O calor carioca envolvia o ambiente, mas a sombra das árvores do Amarelinho trazia um frescor reconfortante. O garçom, acostumado a servir boêmios e intelectuais, trouxe as cervejas sem se dar conta de que estava atendendo a um homem que havia deixado o mundo físico mais de um século atrás.
“Se posso fazer uma observação,” disse Machado, enquanto erguia o copo para um brinde, “é que esta conversa será, espero, como minhas obras: cheia de ambiguidade, mas deliciosamente intrigante.”
E assim, entre goles de cerveja e reflexões profundas, o encontro entre os dois escritores transcendeu não apenas o tempo, mas também qualquer lógica. Era como se a história de Brás Cubas estivesse sendo reescrita mais uma vez, com o próprio autor oferecendo novos capítulos — ou talvez, simplesmente sussurrando ao vento que o tempo, afinal, é apenas um detalhe.
Ivo Donayre: Mestre Machado, agradeço pela oportunidade de estar aqui. Escolhi para a entrevista o Amarelinho porque tem muita história para mim, na juventude quando morava no Rio de Janeiro — hoje moro em São Paulo —, perambulava por este centro histórico, todos os dias descia de bondinho de Santa Tereza, onde morava, e caia direto no Amarelinho. Para começar, gostaria de perguntar: por que o senhor escolheu Bento Santiago como narrador de Dom Casmurro?
Machado de Assis: Meu caro Ivo, Bento foi escolhido porque carrega consigo o peso da subjetividade. Veja bem, narrar em primeira pessoa é um artifício tão honesto quanto suspeito. A verdade que ele apresenta é filtrada por suas memórias, ressentimentos e, claro, pelo ciúme. O leitor, por sua vez, deve navegar por essas águas turvas e decidir o que é corrente e o que é remanso.
Ivo Donayre: Machado, o senhor é frequentemente descrito como um dos maiores observadores da alma humana na literatura brasileira. De onde vinha essa capacidade de capturar nuances tão profundas do comportamento humano?
Machado de Assis: Creio que é a vida, meu caro. A observação atenta dos pequenos gestos, das palavras ditas ao acaso, das omissões e silêncios. Eu era um grande ouvinte, mais do que falador. E talvez seja isso que permitiu que eu enxergasse o que muitos deixam passar despercebido. A literatura, afinal, é uma forma de amplificar o que o mundo sussurra.
Ivo Donayre: Falemos de Dom Casmurro. Muitos leitores ainda debatem: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? O senhor já se cansou dessa pergunta?
Machado de Assis: (rindo) Ah, meu amigo, talvez Capitu tenha sido fiel, talvez não. Mas o ponto não é esse, entende? O que importa não é se ela traiu, mas como Bentinho se consumiu na dúvida. A história não é sobre Capitu, mas sobre como enxergamos as pessoas através das lentes do nosso próprio ciúme e insegurança.
Ivo Donayre: Essa ambiguidade em sua escrita é algo que sempre fascinou seus leitores. O senhor acredita que ela é a chave para a longevidade de suas obras?
Machado de Assis: Sem dúvida. A vida em si é ambígua, Ivo. Poucas coisas são absolutas. Se a literatura é o espelho da vida, então ela deve ser igualmente cheia de reflexos contraditórios, de luzes e sombras. O leitor que se envolve com minhas obras encontra nelas não respostas definitivas, mas um convite para pensar.
Ivo Donayre: Voltando um pouco à sua carreira, como foi o início de sua trajetória como escritor? Encontrou muitos obstáculos?
Machado de Assis: Ah, foram muitos, sim. Nasci em circunstâncias humildes, como bem sabe, e a cor da minha pele não foi um facilitador em um Brasil ainda profundamente marcado pela escravidão. Mas encontrei na leitura e na escrita o meu refúgio, e também a minha arma. Persisti, porque acreditava que as palavras podiam me levar além das limitações impostas.
Ivo Donayre: O senhor mencionou o racismo que enfrentou. Como enxerga a questão da inclusão e do reconhecimento de escritores negros na literatura brasileira hoje?
Machado de Assis: Vejo progressos, mas também sei que a luta é contínua. Há muitos escritores negros brilhantes que não recebem o devido espaço. Espero que meu exemplo possa ser uma inspiração, mas sei que há muito a ser feito para garantir uma verdadeira equidade.
Ivo Donayre: O que o senhor acha que mudou na literatura desde o século XIX até os dias de hoje?
Machado de Assis: A forma de se expressar mudou muito, como é natural com o passar do tempo. As questões sociais, políticas e culturais refletem-se nas obras literárias de maneiras que talvez fossem inimagináveis em minha época. No entanto, os dilemas humanos — o amor, o ciúme, a ambição, a dor — esses permanecem. A literatura continua sendo o espelho dessas verdades universais.
Ivo Donayre: Uma curiosidade: quais escritores influenciaram sua escrita?
Machado de Assis: Ah, muitos! Fui particularmente influenciado por Shakespeare, com sua capacidade de mergulhar na alma humana; por Montaigne, em seus ensaios reflexivos; e por Eça de Queirós, que considero um mestre na descrição da sociedade portuguesa. Mas, acima de tudo, a vida e as pessoas foram minhas maiores fontes de inspiração.
Ivo Donayre: Se tivesse que escolher uma de suas obras como a mais representativa de sua carreira, qual seria?
Machado de Assis: É difícil escolher, mas creio que Memórias Póstumas de Brás Cubas encapsula muito do que sou como escritor. A ironia, o humor, a reflexão filosófica — tudo isso está lá.
Ivo Donayre: E como o senhor gostaria de ser lembrado pelas futuras gerações?
Machado de Assis: Apenas como alguém que amou as palavras e tentou compreendê-las. Se minhas obras conseguirem tocar os leitores, ajudá-los a refletir sobre si mesmos e sobre o mundo, terei cumprido meu papel.
Ivo Donayre: Por fim, se pudesse deixar uma mensagem para os leitores do século XXI, qual seria?
Machado de Assis: Diria que a literatura é o único tribunal onde todos os veredictos são válidos, desde que bem argumentados. Leiam com a mente aberta, desconfiem das certezas e apreciem a beleza das ambiguidades. E, claro, nunca subestimem o poder de um olhar – seja ele o de Capitu ou o de quem lhes observa agora.
Epílogo: O Retorno ao Tempo
O crepúsculo havia tingido o céu carioca de tons dourados e alaranjados, como se o tempo também quisesse deixar sua assinatura naquele encontro singular. Machado de Assis terminou sua última frase com um sorriso enigmático, um gesto tão cheio de significado quanto suas palavras.
Ivo Donayre olhou ao redor. O Amarelinho, com suas cadeiras de madeira e o aroma de chope fresco, parecia o mesmo. Mas algo no ambiente havia mudado. Não era mais o calor de uma tarde de verão que ele sentia, mas uma brisa inesperadamente fria, como se o próprio tempo estivesse soprando um adeus.
“Senhor Donayre,” começou Machado, ajustando os óculos com o ar de quem já sabia tudo o que viria a seguir, “o tempo nos concedeu este momento, mas ele é um senhor ciumento. Já sente nossa ausência.”
Ivo assentiu, sentindo um aperto no peito. “É verdade, senhor Assis. Essa brecha que nos uniu não pode permanecer aberta para sempre. Mas a conversa que tivemos… isso viverá.”
Machado ergueu seu copo vazio em um brinde final. “A literatura tem esse poder, meu caro. Ela transforma momentos efêmeros em eternidade. Nós dois, agora, estamos em um livro que não precisa de capa, mas de memória.”
O garçom se aproximou para recolher os copos, mas, quando Ivo tentou pegar sua carteira para pagar, Machado o deteve com um gesto. “Deixe comigo,” disse ele com um brilho divertido nos olhos. “Já paguei com histórias. E não há moeda mais valiosa.”
Quando Ivo piscou, Machado não estava mais lá. A cadeira vazia, o copo vazio, e um vago aroma de páginas antigas impregnado no ar eram as únicas evidências de que ele estivera ali. O garçom, confuso, perguntou se havia algo mais que pudesse trazer, mas Ivo apenas balançou a cabeça, incapaz de explicar o inexplicável.
Já no táxi de volta para o aeroporto Santos Dumont, Ivo abriu sua mochila e encontrou algo que não havia colocado ali: um exemplar desgastado de Memórias Póstumas de Brás Cubas, com uma dedicatória que parecia recém-escrita:
“Ao senhor Donayre, que encontrou no tempo uma oportunidade de eternidade. Obrigado pela conversa. Machado de Assis.”
De volta a São Paulo, Ivo sentou-se em sua escrivaninha, olhando para o exemplar do livro com reverência. Pensou em como aquele encontro havia sido mais do que uma entrevista; fora uma viagem às profundezas da literatura e da alma humana. Machado retornara ao seu lugar, entre as páginas e as mentes dos leitores. Ivo, por sua vez, sabia que sua missão agora era continuar contando histórias — não para prender o tempo, mas para libertá-lo. O relógio na parede deu as badaladas da meia-noite. A cidade dormia, mas Ivo estava acordado, escrevendo. Afinal, como dissera Machado, as histórias nunca terminam, apenas mudam de mãos.
Caro Ivo, me emociono a participara desta leitura. A inserção de elementos metafísicos e poéticos — como o tempo presente como um personagem e o exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas com dedicatória — enriquece a narrativa, convidando o leitor a refletir sobre o papel da literatura na transcendência das limitações humanas.
O texto não é apenas um tributo ao mestre Machado, mas também uma celebração da força narrativa, capaz de unir épocas, realidades e imaginários em um encontro único e inesquecível.
Parabéns Ivo. O Assis se inspirou no Brás Cubas e também quis deixar seu depoimento e encontrou um ótimo interlocutor.
Fiquei curioso em saber o que ele achou do choppe. Diferente?
Fantástico! Ousado! Corajoso!Texto delicioso! Parabéns!!
Uma espetacular experiência literária, da mais nobre engenhosidade imaginativa que se possa vivenciar em leitura. A cada linha, parecemos sentir o calor, o viço, de um momento em diálogos surpreendentemente vivo.
A alma da literatura, que Ivo abraçou como nunca, de dar vida ao invisível, e passear pelos mais ardentes sonhos, e quimeras de vida, como se sendo vivida estivesse entre ele e o mestre Machado. E nos traz como um ramalhete de telas “vivas”, unidas como uma bela pintura em palavras.
Saudações poéticas
Precisamos da literatura como precisamos de respirar. Desde os tempos imemoriais o homem teve que contar o que via ao seu redor, naquela época em imagens pintadas nas paredes das cavernas, mas tenho certeza de que as histórias já passavam de um para outro via oral. Imaginem uma noite bem escura, céu estrelado, uma fogueira ardendo no centro, ao redor todos reunidos e aquele mais velho contado de onde tinha vindo a tribo, pelo que tinham passado para chegar ali, os desafios enfrentados, os animais caçados, as tempestades superadas, e até os mistérios que não conseguiam explicar viraram ira de seres extraordinários ou sua bondade numa fartura encontrada no caminho. Naquele círculo ao redor da fogueira, cada palavra tinha peso, cada gesto ampliava a narrativa, e os ouvintes, especialmente as crianças, absorviam aquelas histórias como lições para a vida, como herança de uma geração para outra. Era ali, sob a luz trêmula das chamas, que nascia a tradição oral, e essas histórias podem ser entendidas também como literatura, um alicerce da nossa humanidade, onde o passado encontrava o presente, e o futuro ganhava significado através da imaginação coletiva.
Em uma homenagem a Machado de Assis, com poder transformador das palavras e com um tom meticuloso e poético, Ivo nos conduz por um encontro fictício que é, ao mesmo tempo, profundamente humano e metafísico, misturando elementos de magia literária e reflexões filosóficas. Inspira-nos a refletir sobre a força transformadora da escrita. Um trabalho cativante. Parabéns, Ivo!
Verdade, temos que nos envolver nessa “força transformadora da escrita” como um poder para alcançar novos mundos. A entrevista é uma fantasia que traz para nos informaçõpes que são reais. Vamos assim procurando significado transformadores para nós e os outros do mundo.
Magnífica essa entrevista que transcende tempo eespaço como só um bom escritor poderia fazer..e eu me refiro a Ivo Donayre que fez oleitor ver Machado com outro olhar, vivenciando o momento como se estivesse presente no Amarelinho…
Literatura serve para soltar a imaginação: visitar mundos novos, viajar no tempo, viver um amor, perseguir baleias, para Alice correr atrás do coelho, para a Ciderela beijar o príncipe, para os teês mosqueteiros serem quatro e… nunca para de contar histórias.
Um momento de ouro… trazer Machado para o cotidiano é nos aproximar do que há de melhor na literatura brasileira. Machado de Assis revive sempre que abrimos seus livros e com esta entrevista, está mais presente do que nunca. Aguardando por outros encontros maravilhosos como este.
O Amarelinho faz parte da minha história. Morava em Santa Tereza, todos os dias descia de Bondinho até o Centro e no Amarelinho que me encontrava os amigos partindo daí para viver nossas próprias aventuras no Rio. E lembre-se que, desta vez, de presente trouxe para casa um livro amarelinho pelo tempo autografado pelo Machado.