“Porque o meu amor, é o seu amor!”
Dedico este, a minha querida avó – Edenir Maria Rita Rodrigues

No mundo ocidental, a morte é um soco de silêncio; é um selo que cala e finda. No entanto, para os povos do Sul Global, como os iorubás, a morte é dança, uma travessia para o Órum, aquele reino onde os ancestrais habitam em eterna comunhão. Não é um fim, mas um retorno; não é um adeus, mas um reencontro em outro tempo. Este texto, qual um cântico rasgado da alma, do grito em silêncio, se insurge contra a mudez do luto para celebrar o renascimento nas águas profundas de Nanã, senhora do barro e da eternidade, como evocado pelo amparo do amigo Leo Puentes, no momento de seu abraço à senhora da Terra.

Minha voz, trêmula e molhada pelo orvalho do olhar, se entrelaça com o fio do luto pela ancestralidade de minha avó materna, Edenir Maria Rita Rodrigues – ou, simplesmente, Dê. Seu desamparo desta Terra-Chão revelou em mim o poder sagrado do dengo africano, em outros moldes, sem tempo e sem o calor da presença. Mesmo que envolto pelas mãos do desalento e da perda do meu porto seguro, o dengo me trouxe de volta à casa-ninho, ora abrigo, ora porto de onde alçar voo. O dengo não é apenas um gesto de afeto, mas um sopro vital de compromisso que, mesmo na ausência, fortalece e nutre. Dengo, esse gesto de cuidado que brota da raiz Banto, como nos canta Nunes (2017), ecoa das Terras Quicongo, que, atravessando oceanos em jangadas de dor e esperança, fez da Terra do algoz um abrigo.

No Brasil, terra do desconforto e da resistência, o dengo se fez semente em solo árido. Tornou-se abrigo no caos, um lume que guia por entre os espinhos da diáspora. É em seu acolhimento que o Oriki — cântico de exaltação ancestral — vibra e arrepia, como se a própria Nanã soprasse axé nas entranhas do ser. O dengo, então, é mais que um afago; é uma revolução. É no toque, no cruzar de olhares e no gesto amoroso que emerge o quilombo interior, despertando outros mocambos, unidos na construção de uma vida coletiva.

Portanto, a humanidade, fragmentada pela violência do racismo, renasce em cada sorriso que resiste. No reencontro das faces azeviches, no toque manhoso que une destinos, continentes partidos se religam. Sob o olhar de Nanã, a lama não é sujeira; é matéria-prima do renascimento. Sendo assim, o luto, que poderia ser poeira de esquecimento, transforma-se em argila viva, moldando novas possibilidades de existência.

Prandi (2001), ao narrar os contos africanos, relata que Nanã, guardiã da memória e senhora do fim, não cessa na despedida. Ela acolhe as almas no ventre da terra, transmutando a morte em ancestralização e a ausência em permanência. Sua sabedoria ressignifica o luto como um caminho de fortalecimento — uma ponte entre os vivos e aqueles que vieram antes, perpetuando ensinamentos em uma cadeia infinita de afetos.

Na despedida de minha avó, ao tocar sua fronte fria e acariciar seus cabelos prateados, fui tomado por um misto de dor e comunhão. Naquele instante, compreendi que a morte não a havia roubado de mim, mas a transformara em um guia espiritual, um farol silencioso que ilumina meu caminho. O carinho que ela tão generosamente me ofereceu em vida se eternizou, resistindo ao tempo e ao espaço.

Quando revisito as nossas memórias, percebo que o dengo não era apenas um afeto, mas um ato político, um gesto de resistência contra o apagamento. Ele sustenta não só minha identidade individual, mas também a coletividade a que pertenço. Agora, diante da ausência física, esse dengo ressignifica o luto, impedindo-me de sucumbir à dor e permitindo-me renascer com a força das águas profundas que Nanã representa, mesmo sendo um barco solto pelo mar.

É à memória de minha avó que dedico este cântico de palavras. Seu carinho e sua presença espiritual continuam a nutrir minha jornada, fortalecendo minha ligação com as raízes africanas e ensinando-me que o luto, sob a sabedoria de Nanã, é mais do que perda: é transformação.

Nanã nos ensina que a morte não é um fim, mas um ciclo, um movimento contínuo entre os mundos. O luto, assim, torna-se uma oportunidade de renascimento, onde a ancestralidade e o afeto se entrelaçam para curar e resistir. Que nas águas profundas de sua sabedoria encontremos a força para moldar, a partir do barro da dor, as esculturas eternas do dengo e da liberdade.

Terra dos caquis, um ano de sua ancestralização

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Referências

  • PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • NUNES, Davi. A palavra não é amor, é dengo. In. Geledés, 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/palavra-nao-e-amor-e-dengo/acesso em: 27 fev. 2024.