Crônica do Nosso Pai
O assobio de nosso pai chegando estabelece um alvoroço entre nós. Muito justo, pois, junto com as compras do Mercado do Choque, vem também um tanto de maria-mole, e mole de risos trocamos piorras (essa vermelha é minha!…) e mordidas em um a outro pé-de-moleque e sopros e lambidas num pirulito que bate-bate esperança, mas de apito finíssimo. Pronto. A casa, que antes estava sonolenta, acorda com nosso pai contando outras delícias de estórias, que o seu Enzo voltou com a família toda pra Itália…, que lá na baixada do Oscar, o Damiro, aquele homem lobisomem, apareceu pra mim: fedendo, peludo: mostrei esta cruz aqui, filho, e ele saiu uivando… Ah, quando passei na curva do Sátiro, um vulto apareceu saltitando, pedindo todo o doce que trazia nas compras, era o malvado Saci, mas como já sabia, só dei o que havia comprado pra ele…
Logo tudo entra no silêncio do sono, para uma outra existência perene de jornadas e jornadas com nosso pai atravessando campos, avenidas, lutando com enormes mamutes, gentes ruins, onças que rugem e rondam nossas casas noite toda. Mas não há medo, não, porque o próximo dia sempre amanhece, e nosso pai segue tecendo manhãs de várias estórias e alegrias no construir brinquedos, ensinando cada parte de um fazer festas de São João, cheias de bandeirolas, construir enormes cavalos de cana de milho, construir o Natal com muitos bichinhos protegendo e aquecendo o menino Jesus, e depois, a invenção do Judas mais feio e traiçoeiro de todos os anos, seguido de uma surra para nosso alívio e vingança: tudo em meio a muita gritaria e algazarra de olhos arregalados, de nós, crianças…
Ainda ouço nosso pai chegando a cada vez que faço meu caminho de casa, ainda ouço nosso pai chegando quando passo no mercado mais próximo, escolho aquele certo pacote de batata chip, a barra de chocolate mais crocante, para quem me espera, sem deixar de narrar as crônicas de todo o percurso, com os perigos passados no trânsito, as ameaças dos mesmos sacis exigindo os doces que formam o elo corrente entre tempos e vidas… — A bença, Nosso Pai!