Em um período de inovação e diversidade na ficção espanhola, a liberdade de parodiar os famosos romances de cavalaria era tudo o que esse poeta castelhano precisava para trabalhar no que seria um dos livros mais importantes da literatura mundial.
Com sua primeira edição publicada em Madri em 1605, El ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, ou, como conhecemos hoje, Dom Quixote, é considerada uma grande obra-prima da literatura e de seu autor, Miguel de Cervantes. Com 126 capítulos e dividido em quatro partes, o livro é uma paródia invulgar onde o protagonista, já com certa idade, entrega-se à leitura dos romances de cavalaria. Em meio a essa fantasia, ele perde o juízo e acredita que esses romances sejam historicamente verdadeiros, decidindo ele mesmo se tornar um cavaleiro andante. Assim, seu protagonista parte pelo mundo em busca de seu próprio romance de cavalaria, tendo seus traços satirizados por Cervantes, que apresenta uma novela de forma realista.
“Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum do mundo; e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se para todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavaleria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama.”
Dom Quixote é considerado por muitos a maior criação da literatura espanhola e é um dos primeiros livros das línguas europeias modernas. O desejo do fidalgo em ser lembrado pela eternidade supera a realidade sem graça em que vive. Por isso, seu maior feito heroico é deixar a comodidade para viver uma aventura da qual se orgulhe.
“Só quem faz mais que outrem é que é mais que outrem.”
Não demorou muito para que Dom Quixote, Sancho Pança e seu famoso cavalo, Rocinante, conquistassem o coração dos românticos da época. A obra passou a ser abertamente elogiada em toda Europa no século XVIII, e, posteriormente, seus personagens foram ilustrados em diversos filmes, animações e na famosa série humorística “Chapolin Colorado”, de Roberto Bolaños.
Dom Quixote foi votado como o melhor livro do mundo por 100 grandes escritores de 54 países diferentes em uma eleição promovida pelo Instituto Nobel Norueguês.
“A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens.”
Para muitos estudiosos e literatos, Dom Quixote é um marco entre a linha tênue que existe entre a sanidade e a loucura. Acima disso, marca a importância da insanidade em tempos monótonos. Acreditando em seu próprio romance de cavalaria, Dom Quixote consegue mudar sua própria vida, aos 58 anos. Em um episódio de Chapolin Colorado, um senhor começa a interpretar o herói da série e acaba dizendo que o faz porque “O Chapolin é alguém importante, mas quem sou eu para esse mundo? Eu sei que não sou o Chapolin, mas gostaria de ser alguém relevante”. Nesse momento, nosso herói conta ao homem sobre a importância de todas as pessoas que fazem a sociedade funcionar, desde o limpador de esgotos até o rei, todos com sua função e sem os quais nada funcionaria realmente. É aí que o homem percebe sua importância e deixa de alucinar. Isso nos lembra muito Dom Quixote, que acreditou por muito tempo que esses romances de cavalaria eram mais importantes do que sua própria vida, de que sua realidade não valia a pena ser vivida, apesar de todo o luxo e bem-estar que podia ter àquela época, ainda não valiam a emoção de viver livre e plenamente.
O companheirismo de Sancho Pança, que permaneceu ao lado de Dom Quixote mesmo sabendo que suas ilusões não eram reais, também foi motivo de inspiração para diversos escritores. Afinal, onde estaria o herói sem seu fiel escudeiro? O verdadeiro herói pode ser tanto quem toma a frente, como quem está lá para apoiar e proteger, independente de tudo. Como o próprio Tolkien diz, em O senhor dos anéis, o verdadeiro herói é Samwise Gangee, fiel escudeiro de Frodo Bolseiro. Sem Sam ao seu lado, ele não teria preservado a sanidade enquanto carregava seu fardo, nem recuperado o anel, muito menos chegado ao seu destino final. Batman e Robin, Coringa e Arlequina, não importa o lado, todos precisam de um apoiador como Sancho Pança!
“Esse meu mestre, por mil sinais, foi visto como um lunático, e também eu não fiquei para trás, pois sou mais pateta que ele, já que o sigo e o sirvo…”
Sobre o autor:
Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi um romancista, dramaturgo e poeta espanhol. Filho de um cirurgião, acredita-se que tenha nascido em Alcalá de Henares, mas pouco se sabe sobre sua infância.
Após um duelo onde fere gravemente um homem, foge para Itália, tendo já renome por suas poesias. Na batalha de Lepanto, o autor perdeu os movimentos da mão esquerda, retornando à Castela logo após. Depois disso, Cervantes tentou assiduamente conquistar um lugar de favorito à corte do rei de Portugal.
A primeira parte de Dom Quixote foi publicada por Cervantes em 1605 e a segunda, apenas em 1615.
O mais curioso sobre Cervantes é que ele, de fato, odiava romances de cavalaria. Provavelmente devido à sua vida agitada, às participações em guerras e duelos ou aos desentendimentos com a nobreza e a busca por um lugar à corte. Talvez, toda essa vivência tenha sido essencial para que, assim como Dom Quixote, Cervantes se cansasse da sociedade e da vida atual e quisesse fugir, usando esse conhecimento como forma de fazê-lo.
Para todos os amantes de literatura, Dom Quixote é praticamente uma leitura obrigatória! Apesar de ser um livro extenso e difícil, ele vale cada minuto do leitor, pois é muito difícil separar poucas frases para preencher o artigo (dá vontade de citar o livro inteiro)!
Esperamos que tenham gostado e logo vamos falar mais sobre as maiores obras e autores da humanidade!