A região norte de Moçambique tem enfrentado insurgências e ataques terroristas desde 2017 até os dias atuais, estendendo-se para diversos distritos e municípios da província de Cabo Delgado, como Palma, Quissanga, Muidumbe, Macomia e Metuge. Esse fenômeno tem gerado grande preocupação tanto para a população quanto para o governo, devido ao número elevado de mortes e deslocamentos forçados.
Desde os primeiros ataques, a Polícia da República de Moçambique esteve presente na região para conter a situação. Posteriormente, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) assumiram a estratégia de combate ao terrorismo. No entanto, devido ao treinamento inadequado e à falta de equipamentos para uma guerra de grande escala, como a insurgência em curso, o Estado moçambicano reconheceu a necessidade urgente de apoio internacional. Diante desse cenário, Moçambique e Ruanda firmaram um acordo de assistência militar para combater o terrorismo na região.
Acordo Militar e Possível Violação da Lei Moçambicana
A entrada das forças ruandesas em Cabo Delgado ocorreu por meio de um acordo direto entre os presidentes Filipe Nyusi e Paul Kagame, sem passar pela aprovação da Assembleia da República. Esse procedimento levanta sérias questões sobre uma possível violação da Constituição da República de Moçambique e de leis específicas relativas à soberania nacional e ao uso de forças estrangeiras no território.
A Lei n.º 8/96, de 5 de julho, que estabelece os princípios fundamentais de defesa e segurança nacional, bem como a própria Constituição moçambicana, determina que qualquer intervenção militar estrangeira deve ser autorizada pelo Parlamento. Entretanto, o governo moçambicano ignorou esse processo legislativo, comprometendo a transparência e a soberania do país.
Além disso, a presença ruandesa tem gerado relatos de incidentes com civis, incluindo abusos e falta de coordenação clara com as FDS. Essa situação pode resultar em insatisfação entre a população local e criar um ambiente propício para tensões futuras, dificultando ainda mais a estabilidade da região.
A Presença das Tropas Ruandesas e seus Impactos
Nos últimos anos, a presença das forças militares ruandesas tem gerado desconforto entre os moçambicanos, especialmente em Cabo Delgado, devido a diversos incidentes, incluindo relações entre soldados ruandeses e mulheres locais. Atualmente, há casos de militares ruandeses que formaram famílias com moçambicanas e tiveram filhos no país.
Esse fator sugere que, além da missão militar, há um interesse estratégico subjacente por parte do governo ruandês. A possibilidade de estabelecer laços familiares pode ser interpretada como uma tentativa de justificar, no futuro, uma permanência prolongada no território moçambicano. Atualmente, as tropas ruandesas desempenham o papel central no combate ao terrorismo, substituindo, na prática, as forças de defesa e segurança locais.
Diante desse contexto, o Estado moçambicano precisa reavaliar urgentemente sua posição para evitar um cenário de invasão indireta. Se a presença ruandesa se consolidar, poderá surgir uma narrativa estratégica alegando pertencimento à região, especialmente considerando o aumento no número de filhos de militares ruandeses com moçambicanas.
Há mais de oito anos, Cabo Delgado sofre com ataques terroristas que se espalham por diversas partes da província. É essencial que as Forças de Defesa e Segurança Nacional estejam preparadas para combater essa ameaça de forma independente, pois, mesmo com o apoio internacional, a insurgência continua. Caso Moçambique continue a depender das forças ruandesas, há o risco de uma futura ocupação militar, resultando no domínio total das tropas estrangeiras.
O histórico de Ruanda na República Democrática do Congo (RDC) serve de alerta. Há evidências de que Ruanda intervém nos assuntos internos da RDC sob o pretexto de combater grupos armados, mas frequentemente explora recursos naturais e consolida sua influência geopolítica na região.
Estratégias para Reforçar as FDS e Reduzir a Dependência de Ruanda
Para que Moçambique possa combater o terrorismo de forma eficaz e reduzir sua dependência de forças estrangeiras, algumas estratégias devem ser implementadas:
1. Fortalecimento da Capacidade Militar Nacional
- 1.1 Reforçar o treinamento das FDS em técnicas de combate ao terrorismo, guerra assimétrica e operações de inteligência.
- 1.2 Melhorar o equipamento e o armamento das FDS, garantindo que possam enfrentar os insurgentes com eficácia.
- 1.3 Criar unidades especializadas em guerrilha e contraterrorismo, adaptadas ao terreno e ao tipo de combate praticado pelos insurgentes.
2. Melhoria da Inteligência e Cooperação Local
- 2.1 Desenvolver um sistema de inteligência militar eficiente para antecipar ataques terroristas.
- 2.2 Trabalhar em colaboração com as comunidades locais para obter informações sobre os movimentos dos insurgentes.
- 2.3 Criar programas de reconciliação para evitar que jovens sejam recrutados por grupos terroristas.
3. Desenvolvimento Socioeconômico da Região
- 3.1 Investir em programas de desenvolvimento para as comunidades afetadas, reduzindo a vulnerabilidade ao recrutamento terrorista.
- 3.2 Criar empregos e oportunidades para os jovens, evitando sua adesão a grupos armados.
- 3.3 Reforçar a presença do Estado em Cabo Delgado, garantindo serviços básicos como saúde, educação, habitação e segurança.
4. Transição Gradual da Retirada Ruandesa
- 4.1 Estabelecer um plano claro de transição, garantindo que as forças ruandesas deixem Cabo Delgado sem comprometer a segurança.
- 4.2 Coordenar a retirada das tropas ruandesas com a entrada de militares moçambicanos treinados para assumir as responsabilidades.
- 4.3 Evitar conflitos entre as FDS e as forças ruandesas durante esse processo, promovendo um diálogo diplomático contínuo.
Conclusão
A presença das forças ruandesas no norte de Moçambique levanta preocupações legítimas sobre uma possível influência geopolítica prolongada e até mesmo uma ocupação parcial ou total da província de Cabo Delgado. O caso da RDC serve como um alerta, pois demonstra como Ruanda pode justificar sua permanência sob o argumento da luta contra o terrorismo, ao mesmo tempo em que consolida sua posição estratégica na região.
Para evitar esse cenário, Moçambique precisa fortalecer sua capacidade de defesa e garantir que a luta contra o terrorismo seja conduzida de forma autônoma. A implementação de estratégias eficazes de segurança, inteligência e desenvolvimento socioeconômico é fundamental para garantir a estabilidade do país e impedir que Cabo Delgado se torne um território de influência estrangeira.
Se o governo moçambicano não agir de forma assertiva, o país poderá enfrentar desafios semelhantes aos vividos pela RDC, colocando em risco sua soberania e segurança nacional.
Este artigo foi escrito em coautoria do Nordine Abudo Ussene e do Esmael Chande.
Reflexão muito importante. parabéns para os autores.