Recentemente, fui impactada por duas matérias que mostravam um cadeirante utilizando um kit adaptado para locomoção — uma espécie de motinha acoplada à cadeira de rodas. Esse dispositivo permitiu que ele se movimentasse pela avenida, mudando de faixa como qualquer outro veículo. Mas, infelizmente, o foco das reportagens foi apenas classificá-lo como infrator de trânsito. Nenhuma linha foi dedicada ao lado humano, à realidade que o levou a tomar aquela decisão.
Essa abordagem midiática reflete exatamente o que nós, pessoas com deficiência severa, enfrentamos todos os dias: um mundo que nos exige coragem constante para sobreviver, simplesmente porque o básico nos é negado. O Estado, que deveria garantir segurança, acessibilidade e dignidade, nos empurra para caminhos perigosos. E, quando buscamos alternativas, somos punidos por elas.
As calçadas, quase sempre — não sei como são nos bairros ricos —, são obstáculos: estreitas, desniveladas, com buracos, postes, degraus ou inclinações absurdas. Isso obriga cadeirantes a recorrerem às ruas, onde enfrentam riscos ainda maiores… Será que desejam que sejamos dizimados pouco a pouco?
Além disso, o risco de andar pela rua é agravado pelo próprio formato das vias públicas. A maioria das ruas é construída com uma inclinação transversal — ou seja, o centro da rua é mais alto que as laterais, formando um arco. Essa diferença de nível entre o meio e as sarjetas é extremamente perigosa para cadeiras de rodas. Ao andar por esse ponto inclinado, a cadeira derrapa e inclina, há um grande risco de a cadeira tombar lateralmente, o que nos obriga a andar na parte menos inclinada: o meio da rua. Ou seja, a rua já não é segura — muito menos o meio dela — e, ainda assim, muitas vezes, é o único caminho possível.
Para piorar, dispositivos que nos oferecem alguma autonomia e certa independência, como o kit de locomoção do cadeirante citado, não são regulamentados pelas autoridades de trânsito. Enquanto isso, veículos comuns — carros, motos, scooters — recebem toda a atenção e direito de circulação. Aliás, itens exclusivos para pessoas com deficiência são sempre ignorados. Ano passado, reclamei de uma cadeira de banho que faz quem não tem equilíbrio de tronco cair para trás. Ignoraram. Prejuízo de mais de R$ 2.000,00. Hoje, a negativa foi de uma empresa de meias compressoras que só atende medidas de corpos padrões — que já andaram — e eu tive o prejuízo de mais de R$ 1.300,00. Quando uma linha de trem deu pane em uma estação, em menos de uma semana arrumaram. Mas o elevador — o único acesso para cadeirantes, já que a estação só tem escadaria comum, e não rolante — está há anos parado. Nunca chegou a funcionar.
Esses fatores revelam o capacitismo estrutural que ainda impera: não nos enxergam como sujeitos de direito, mas como problema — e querem nos apagar.
O Estado ignorar e não respeitar nossas necessidades não é só negligência — é uma das formas mais cruéis e perversas de capacitismo.
Agora, não podemos andar nas calçadas, não podemos andar na sarjeta, não podemos andar no meio da rua… Vamos andar por onde? Querem que voltemos a nos trancar?
E a exclusão vai além das ruas e dos itens ortopédicos ou estruturais. O símbolo internacional de acessibilidade da ONU, por exemplo, que agora querem adotar no Brasil, não representa todos os tipos de deficiência, não representa aquelas visíveis e mais complexas. Sim, já nos apagaram até do símbolo! Colocaram um bonequinho em pé, com todos os membros e sem nenhum apoio de locomoção. A acessibilidade visual e institucional também precisa ser repensada.
O que quero não é impunidade: se o rapaz tivesse vitimado alguém — sem querer ou não — e/ou estivesse sob efeito de álcool, ele teria que responder pelas consequências. Mas tudo que vi foi um rapaz obrigado pelo próprio Estado a se colocar em perigo… Quem deveria ser multado é o Estado.
Queremos apenas viver com dignidade. Trabalhar, estudar, contribuir com a sociedade. Não é um pedido de privilégio — é o mínimo. A acessibilidade não é um luxo, nem um favor: é um direito básico, como qualquer outro.
É urgente que se escutem as vozes das pessoas com deficiência, que se promovam políticas públicas que realmente incluam e respeitem a todos. Enquanto isso não acontece, seguimos sendo punidos por buscar, com as ferramentas que temos, o que todos deveriam ter por garantia: liberdade, mobilidade e respeito.
Nota explicativa:
A inclinação transversal da rua é uma elevação intencional feita no centro da via em relação às suas bordas (sarjetas), criada para permitir o escoamento da água da chuva. Essa inclinação forma um “arco” que pode ser quase imperceptível para pedestres ou motoristas, mas é extremamente perigoso para cadeiras de rodas, que podem tombar ao trafegar sobre esse declive lateral.
Oi Nani, parabéns pela esta grande iniciativa 🙏🙏🙏.
Infelizmente no Brasil somos colocados de lado em todos os setores , deficientes tem vez SIM. E somos muitos eficientes naquilo que é determinado por nós.
Gratidão Deus abençoe grandemente a sua vida
Nani, o quão forte e tocante é a expressão do seu relato!
E essa voz bondosa da Literatura, vociferando e nos movendo a reagir diante de uma situação das mais indignantes.
Estamos com você, confiantes nas mãos e na leitura literárias, no desbanque de tantas negligências e verdades envolvidas em poesia.
O mundo e os livros precisam de você.
Estou admirada com as manifestações desta autora, além de uma escritura coerente, limpa e concisa. Nani Paiva está coberta de razão, digo isto, porque eu, inclusive, fui refém desta situação absurda. É impossível e inumano andar nas calçadas de São Paulo. Por quê? Porque nelas só encontramos buracos, fendas, poças d’água, rachaduras, perfurações, ranhuras, pedras e paralelepípedos que saíram de seus espaços de origem e foram jogados, com a força das intempéries, exatamente onde circulam os pedestres, entre crianças, deficientes corporais e visuais. Há pouco tempo tive que fazer uma cirurgia, com direito, a próteses e tudo mais. Durante minha convalescência eu precisei sair, algumas vezes, para as devidas revisões médicas. E o que acontecia: com a cadeira de rodas, impossível passar pelas calçadas desta São Paulo rica por um lado, mas precária do outro; com o andador e a bengala, horrível tanto quanto. Quem sabe o livro de Nani, seja mais um grito, porém, não sufocado na garganta, para que, alguém do poder público possa salva toda a população, que lhes devolve em impostos desajustados. Nani declara o que muitos de nós gostaríamos de declarar também com acenos, reivindicações, apelos e vozes de protestos. Nina, obrigada pela coragem em registrar as vozes asfixiadas de todos nós.
@MarleneFortuna grata pela lindíssima mensagem, pelo carinho e pelos votos!!! Mensagem maravilhosa! Que assim seja!!! Grande abraço, querida!
A situação dos cadeirantes e pessoas com deficiência (PCD) no Brasil ainda é marcada por muitos desafios. Apesar de avanços na legislação, como a Lei Brasileira de Inclusão, a acessibilidade urbana, o acesso ao mercado de trabalho, à educação de qualidade e à saúde continuam limitados. Barreiras físicas, sociais e atitudinais ainda impedem a plena inclusão e participação dessas pessoas na sociedade. É necessário transformar direitos em realidade com ações concretas e fiscalização efetiva.
@FlaviaLanzotti grata pelo rico comentário
Parabéns Nani Paiva pela sua história dos desafios de pessoa deficientes. Escrevi um livro sobre “Anjinhos Cadeirantes “ sobre 5 jovens com paralisia cerebral. Nesse livro descrevi sobre esses desafios para os cadeirantes.
No Brasil tem faixa para motos, bicicletas, e eu cobro uma faixa para os cadeirantes também. Muitos acidentes de cadeirantes que sofrem, até alguns morrem na competição dos automóveis.
Ilson
@escritor.ilsontavares
@Ilson Grata! Que demais o seu trabalho!!! Parabéns!!! Uma causa necessária e urgente essa das faixas para cadeirantes!
Vivemos em uma sociedade formada por milhões de indivíduos, cada um com seus direitos e interesses. As pessoas com deficiência têm conquistado um lugar na sociedade graças a personagens como Nani Paiva — que não se calam, que publicam livros, que ocupam as ruas e os espaços públicos para defender direitos conquistados e garantir o cumprimento das leis que os amparam.
Há anos acompanho o crescimento da Nani. Lembro-me de quando chegou à editora com um livro infantil para publicar — e desde então venho observando sua trajetória como autora, como mulher, como cidadã engajada. Hoje, sua escrita carrega uma potência que vai além da literatura: ela denuncia, representa, confronta.
Este artigo é mais do que um depoimento pessoal. É um grito coletivo. É o registro de uma realidade invisibilizada, marcada pelo descaso, pelo abandono e pelo capacitismo institucionalizado. Neste artigo específico, a Nani não está apenas reivindicando novos direitos, mas denunciando o apagamento dos direitos já conquistados — um retrocesso silencioso, mas brutal.
Ivo, meu amigo, sempre com comentários maravilhosos! Amei! Gratidão! Grata também por me encorajar! De editor a amigo!