O menino que escrevia depois de ler

Prologo — antes da entrevista

Quando me sentei para escrever esta entrevista, fiz como quem escreve uma carta a um mestre que nunca conheceu pessoalmente, mas que sempre habitou seus silêncios. Lembro que, ainda jovem, nas ruas de Lima, comprava livros usados em bancas e lia Vargas Llosa como quem consulta um oráculo. Sonhava, então, com a literatura como se ela fosse uma ponte secreta para atravessar a vida.

Hoje, ao construir esta conversa imaginária com ele — tão vívida em minha mente que posso sentir o cheiro dos livros ao nosso redor —, voltei àquele estado de descoberta. Esta não é apenas uma homenagem. É um rito. É como sentar-se diante do espelho da escrita e perguntar: o que é ser escritor?

Como muitos que começam a escrever, tenho sede de entender. Quero saber como se faz, o que move, o que sustenta, o que impede e o que liberta. Vargas Llosa sempre foi, para mim, esse espelho. Nesta conversa, quem pergunta não é só Ivo Donayre — é todo aquele que já sentiu uma história nascer dentro de si.

Ivo Donayre: Mário, que alegria e honra estar com você nesta entrevista imaginária honrando a profissão de escritor e honrando a literatura onde tudo é possível como esta entrevista que se gestou em minha imaginação. Sou brasileiro, mas morei em Lima dos cinco aos dezenove anos de idade. No meu caso, quando tive o poder de viajar quis me transferir para a minha terra, como se eu estivesse preso onde estava, essa vontade fervilhava dentro de mim, mesmo que essa identidade com o Brasil tenha sido na primeira infância, eu guardei em mim a essência de um outro mundo e de um outro povo com o qual me identificava. Foi assim que senti aos 19 anos o impulso de partir em busca de novos horizontes. Foi assim comigo, como foi com você? O que levou um rapaz peruano a deixar sua terra tão cedo?

Mário Vargas Llosa: Acredito que também há algo de instintivo nesse impulso. Não se trata apenas de geografias externas, mas de uma geografia interior. O Peru me formou, com seus contrastes sociais, sua beleza selvagem, sua violência às vezes silenciosa. Mas senti, muito cedo, que precisava de um espaço onde pudesse respirar livremente e sonhar com o que ainda não sabia nomear. A Espanha, depois Paris, ofereceram esse espaço simbólico. Não fui para fugir do Peru, mas para compreender melhor o que ele significava para mim.

Ivo Donayre: Para quem quer ser um escritor famoso como você, ouvi uma história impressionante e inspiradora, de um menino que lia um livro e, depois de terminar de ler, pegava uma caneta e papel e escrevia a continuação da história que leu. Isso é verdade, são memórias muito distantes, o que você lembra sobre isso, ou o que a sua mãe te contou sobre isso?

Mário Vargas Llosa: Isso é verdade sim. Minha mãe dizia que, enquanto outras crianças se divertiam na rua, eu me recolhia em meu canto com um livro no colo. Era como se cada história lida acendesse em mim uma centelha de inquietação. Eu não queria que a história terminasse. Queria prolongá-la, recriá-la, vivê-la mais um pouco. Então escrevia continuações, novos finais, desdobramentos. Era um jogo de imaginação, mas também uma maneira de começar a compreender que a palavra escrita têm o poder de criar realidades paralelas.

Ivo Donayre: Conte essa história do teu pai te colocar num colégio militar para impedir que você se tornasse um escritor. Quais os motivos que seu pai via no seu comportamento que fizeram ele te punir desta forma e tomar essa atitude tão radical?

Mário Vargas Llosa: Meu pai me conheceu aos dez anos, após anos de ausência, e não gostou do que viu. Um menino franzino, sensível, que lia demais e falava de escritores como se fossem heróis. Ele via a literatura como um caminho perigoso, que levaria à marginalidade ou à inutilidade. Queria que eu fosse um homem de ação, um profissional respeitável. Por isso, me matriculou no colégio militar Leoncio Prado, para me “endireitar”. Não imaginava que ser escritor estava dentro da minha essência, que em todo lugar que me pusesse encontraria o caminho da literatura. E justamente ali, na brutalidade do colégio militar, encontrei a matéria bruta do meu primeiro romance.

Ivo Donayre: O que você fazia no colégio militar para dar continuidade a essa vontade de ser escritor?

Mário Vargas Llosa: Escrevia às escondidas. Num espaço trancado entre paredes os colegas logo descobriram que era bom de escrever histórias. E passei a escrever resposta às cartas das namoradas dos alunos mais graduados. Em todo lugar escrevia e meus cadernos de matemática viravam cenários de contos fantásticos. Aproveitava a hora do descanso, ou a madrugada silenciosa, para rascunhar ideias. Essa prática me acompanhou a vida toda: primeiro surgia uma ideia, vinda de alguma experiência, anotava e depois essa ideia servia para desenvolver uma história. O sofrimento no colégio, os abusos, a hierarquia cega e violenta, tudo isso fermentava em mim uma necessidade urgente de me expressar. A escrita era, para mim, um modo de resistência, um abrigo contra o absurdo.

Ivo Donayre: Parece que você encontrou inspiração para o seu primeiro livro nesse colégio militar. Conte com detalhes sobre isso.

Mário Vargas Llosa: “La ciudad y los perros” nasceu dessa experiência no colégio militar. O livro é quase um ato de vingança simbólica contra a opressão daquele ambiente. Reuni os personagens a partir de tipos reais, mas dei a eles mais densidade e complexidade. Queria mostrar como a instituição militar deformava jovens, como a violência se tornava linguagem cotidiana. Foi um livro escrito com raiva, mas também com compaixão pelos que, como eu, estavam tentando sobreviver naquele mundo violento.

Ivo Donayre: Conte-nos sobre o processo de escrita desse primeiro livro. Como escrevia, quando escrevia, como pensava, o que o motivava a continuar a escrever até terminar. Terminou no colégio, foi depois, onde?

Mário Vargas Llosa: Comecei a escrevê-lo anos depois, quando já morava na Espanha. Trabalhava de dia, escrevia de madrugada. Foi um processo lento, exigente. Reescrevi muitas vezes. Lia em voz alta, cortava, reordenava. Eu acreditava profundamente no que estava escrevendo, mas também temia o fracasso. O que me manteve foi o desejo de fazer jus à experiência vivida. Não queria apenas contar uma história: queria provocar reflexão, queria incomodar.

Ivo Donayre: Quanto tempo se passou do dia em que você terminou “La ciudad y los perros” até o momento de encontrar uma editora que aceitou publicar este seu primeiro livro? Conte cada detalhe desde o momento em que você decidiu percorrer as editoras para tentar a publicação.

Mário Vargas Llosa: Foram mais de dois anos de recusa. Enviava manuscritos, recebia respostas padronizadas, ou nenhum retorno. Cheguei a pensar que o livro jamais veria a luz do dia. Até que um amigo levou o texto à Seix Barral, em Barcelona. Carlos Barral leu e decidiu publicar. Quando recebi a notícia, chorei. A publicação em 1963 foi um escândalo no Peru. O livro foi queimado pelos cadetes do Leoncio Prado. Mas eu sabia que havia acertado na ferida.

Ivo Donayre: Por que saiu do Peru e foi morar no exterior, o que passava em sua cabeça para deixar o Peru e ir morar no exterior?

Mário Vargas Llosa: Havia uma sede de mundo. Eu queria conhecer os escritores que lia, respirar o mesmo ar que eles. Paris, para mim, era um símbolo de liberdade e sofisticação intelectual. No Peru, eu me sentia limitado, como se minha voz não tivesse eco, quem sabe por essa experiência do colégio militar. No exterior, aprendi a escutar o mundo e, paradoxalmente, a compreender mais profundamente minha própria terra.

Ivo Donayre: O que ocorreu na sua vida depois que uma editora decidiu publicar “La ciudad y los perros”?

Mário Vargas Llosa: A publicação mudou tudo. Ganhou o Prêmio Biblioteca Breve e me projetou internacionalmente. Pela primeira vez, pude viver da escrita. Passei a viajar, dar conferências, publicar com regularidade. Mas, mais do que o prestígio, foi a confirmação de que minha voz podia ser ouvida. E isso mudou meu destino.

Ivo Donayre: Você escreveu um outro livro, antes ou depois, minha memória me falha, foi antes ou depois, que tinha um título parecido “Los perros” que eu li quando tinha 16 anos. Lembro que se passava também em um colégio onde um acidente mudou a vida de um garoto estudante. O que você narra é sobre o papel social destruído de um jovem que sofreu uma castração que apesar de seguir em frente, a vida fica marcada para ele pela mutilação, mudando  o seu papel como homem. Conte sobre esse livro.

Mário Vargas Llosa: “Los perros” foi minha estreia literária publicado em 1959. Já ali se veem os temas que me perseguiriam: o poder, a violência, a formação da identidade. Era um livro de aprendizagem, fruto de muitas leituras e da vontade de encontrar meu próprio estilo. Não foi um sucesso imediato, mas me deu confiança.

Ivo Donayre: Conte sobre essa arte de escrever: quais são os seus hábitos de escrita? Quais são os seus hábitos de leitura? Você escreve com caneta sobre papel?

Mário Vargas Llosa: Escrevo todas as manhãs, religiosamente. À mão, com caneta-tinteiro, sobre papel pautado. Só passo para o computador quando a estrutura está formada. Reescrevo obsessivamente. Leio muito, em diferentes idiomas, e volto sempre aos clássicos. Acredito que a disciplina é a alma do ofício. A inspiração existe, mas precisa encontrar o escritor trabalhando.

Ivo Donayre: Conte o que o fez ser escritor? O que o fez continuar a escrever.

Mário Vargas Llosa: Escrevo porque preciso. A literatura é meu modo de compreender o mundo. Quando escrevo, posso ser outros, viver outras vidas. É uma forma de liberdade, mas também de compromisso com a realidade. Continuo a escrever porque acredito que a ficção tem o poder de iluminar o que a política ou a religião obscurecem.. Escrever, para mim, é resistir ao esquecimento.

Epílogo — depois da entrevista

Fechei o caderno, ainda com a caneta na mão. Lá fora, o mundo seguia com seus ruídos. Mas dentro de mim havia um silêncio cheio de ecos. A voz de Vargas Llosa ainda ressoava. Cada resposta parecia vir de alguém que não escreve por vaidade, mas por necessidade vital.

Percebi que ser escritor não é um gesto: é uma condição. Não se trata de ter publicado livros, mas de estar permanentemente em escuta com o mundo e com aquilo que nele não se vê. Escrever é decifrar o invisível, resistir à pressa, aceitar a solidão e transformá-la em arte.

Tudo isto ficará comigo como um aprendizado eterno. O menino que lia e escrevia continua aqui — agora mais consciente de que a arte de escrever é uma forma de liberdade e de coragem. E se um dia alguém me perguntar por que ainda escrevo, direi: porque um dia ouvi, mesmo que na imaginação, Mario Vargas Llosa me dizer que era possível.

Esta entrevista foi concebida por Ivo Donayre como homenagem a Mário Vargas Llosa, falecido em abril de 2025. Que sua obra continue inspirando novos escritores a encontrarem sua voz.