Passava das dez da manhã quando cheguei ao povoado de Barra de Jequiá para encontrar Elô Baêta e dar início à nossa conversa. Foi nesse lugarejo encantador, pertencente a Jequiá da Praia, no litoral sul de Alagoas, onde ela cresceu, viveu sua infância e juventude, e para onde regressou há alguns anos, que decidi realizar esta entrevista tão especial.

Quando me deparei com o ar bucólico e singelo do local, senti imediatamente uma simpatia irresistível. Em pouco tempo, lá estava eu, disposto a passar alguns dias naquele pequeno pedaço de paraíso, envolto por uma tranquilidade inspiradora e acolhedora, perfeita para poetas e escritores. Diante de mim se estendiam as águas esverdeadas e serenas do rio, silenciosamente testemunhando o cotidiano dos moradores; logo adiante, o mar e suas ondas, ora suaves, ora altivas, ainda intocados por construções ou multidões. Completa o cenário um manguezal majestoso, crescendo exuberante a cada trecho de terra disponível.

Durante os dias que antecederam e acompanharam nossa entrevista, senti-me imerso em um modo de vida tão diferente do meu habitual, experimentando costumes que poderiam facilmente pertencer às páginas dos clássicos da nossa literatura regional. Um estilo de vida que parece distante e até mesmo estranho para nós, habitantes das grandes metrópoles, que vivemos imersos em um ritmo frenético e incessante.

A vida em Barra de Jequiá é realmente irresistível, como Elô Baêta fez questão de me revelar. Neste lugar ainda se vê graça em levar cadeiras para a calçada e prosear tranquilamente com a vizinhança por horas seguidas. Ainda há tempo para admirar o pôr do sol e assistir à lua surgir brilhando sobre as redes e tarrafas dos pescadores. Ainda se valoriza o costume de pedir a bênção à mãe, ao pai e aos avós, subir nas árvores para colher cajus e mangas e saboreá-los à sombra das próprias árvores, contando estrelas ao anoitecer. Ainda ecoam claramente os sons do galo cantando ao amanhecer— e a qualquer hora do dia ou da noite —, as cigarras entoando seus cantos melodiosos, o chiado suave dos grilos escondidos nos pequenos pedaços de Reserva de Mata Atlântica, cuidadosamente preservados na região.

Ainda há beleza em assistir às novelas, sentados tranquilamente no banco da pracinha, diante da televisão estrategicamente colocada em frente à singela capela de Santa Teresinha das Rosas, uma santa encontrada no mar por um pescador. Ali mesmo, nesse cenário de serenidade, agradecemos silenciosamente o privilégio de viver com tanta simplicidade e tranquilidade. Uma vida feita sob medida para escritores, poetas e sonhadores como nós.

Ivo Donayre: Elô, é uma alegria estar com você aqui na sua terra natal. Para começarmos nossa conversa, conte-nos como nasceu seu amor pela leitura e pela escrita.

Elô Baêta: Como todo amor verdadeiro, foi uma afinidade mágica, uma simpatia espontaneamente forte pelas letras, algo que parecia já ter nascido comigo. Lembro-me nitidamente de meu pai, professor de Geografia, sempre debruçado em seu gabinete de madeira, cercado por folhas, provas e cadernos. O cheiro de livros e papel parecia entranhado em mim. A imagem mais viva da minha infância sou eu brincando de escrever, preenchendo linhas de um caderno com rabiscos, ainda sem conhecer as letras.

Meu lugar favorito era justamente ali, no corredor daquele sobrado de paredes brancas e portas verdes, onde eu morava e vivenciava os escritos que povoavam o gabinete do meu pai. O chão de taco escuro parecia acolher os passos dos familiares ou conhecidos, que imediatamente se transformavam em personagens das minhas histórias. As estantes com prateleiras pintadas de verde eram repletas de enciclopédias, manifestos, livros filosóficos e aqueles encantadores dicionários ilustrados que enchiam meus olhos e minha imaginação.

Havia também uma pequena janela, de frestas estreitas, sempre aberta. Era dali que eu podia me debruçar e conversar com as árvores do quintal: uma mangueira frondosa e um generoso pé de goiaba. Eu contava a elas as histórias que inventava, e tinha a agradável sensação de que me ouviam com atenção. Tudo naquele espaço parecia acolher meus pensamentos, tornando-se meu verdadeiro “confessionário de escrita”. Era um mundo só meu, e creio que todo escritor possui esse universo particular, que só os livros parecem compreender plenamente.

Foi nesse ambiente mágico e introspectivo que descobri, ainda criança, um dos grandes segredos que todo escritor guarda: o de serem exímios criadores de mundos próprios. Independentemente do que a vida trouxesse, eu sempre poderia retornar àquele refúgio íntimo, onde minha escrita habitava tranquilamente, no gabinete do meu pai.

Ivo Donayre: Quais vozes e autores mais influenciaram sua trajetória?

Elô Baêta: Os contos de fadas dos irmãos Grimm e, especialmente, as “histórias de Trancoso”, contos populares surgidos no século XVI pela criatividade do escritor português Gonçalo Fernandes Trancoso, tiveram uma influência enorme sobre mim. Essas histórias possuíam uma moral no fim, ensinamentos éticos e de bom comportamento, narrados oralmente por nossas mães, avós e tias, principalmente à noite, acreditando que o ensinamento ficaria guardado na mente da criança enquanto dormia, guiando-a para uma vida virtuosa. Os ensinamentos do livro “Contos & Histórias de Proveito & Exemplo”, em particular, despertaram minha curiosidade sobre a força imagética e moral da literatura.

A palavra literária tem a capacidade única de criar imagens vívidas, permitindo ao leitor visualizar claramente pessoas, objetos e lugares apenas com a força da descrição detalhada. Essa habilidade narrativa, chamada “mímeses”, recria ações humanas de forma tão intensa que o leitor sente como se estivesse vivenciando essas mesmas ações. É essa capacidade imagética da literatura que me fascinou profundamente e me levou à escolha profissional pelas Letras, começando pelo Jornalismo e, posteriormente, dedicando-me à pesquisa e ao ensino da escrita.

Desde jovem, sentia-me naturalmente atraída pela escrita, criando histórias inspiradas no cotidiano familiar e na escola, onde me destacava nas aulas de Língua Portuguesa e Redação. Esse interesse se consolidou ainda mais ao escrever para o jornal do Grêmio Estudantil, um passo decisivo na minha trajetória profissional. Após me formar em Jornalismo, passei mais de vinte anos nas redações, especialmente em suplementos literários, percebendo claramente os paralelos entre o ofício jornalístico e o literário. O jornal, no passado, era espaço de expressão e divulgação para grandes escritores, que frequentemente colaboravam como revisores nas redações.

Esse intenso convívio com a palavra, na sua expressão mais profunda e autêntica, me guiou à pesquisa acadêmica e ao ensino, promovendo a escrita como uma prática acessível, poderosa e transformadora.

Ivo Donayre: Você se recorda do seu primeiro texto que sentiu que “era realmente seu”?

Elô Baêta: Sim, chamava-se “Como nasce uma lágrima?”. Eu tinha cerca de 14 anos e o escrevi inspirada por um quadro no meu quarto que retratava um pierrô chorando ao lado de um cavalo. Nunca mostrei o texto a ninguém, até minha tia encontrá-lo por acaso. Ao lê-lo, ela chorou profundamente. Essa reação me marcou muito.

A imagem daquele pierrô me fazia imaginar diversas razões para o seu choro: uma tristeza, uma frustração, um desencanto ou até uma bronca que teria levado. O texto nasceu dessas reflexões juvenis sobre tristezas cotidianas e íntimas. Quando minha tia explicou que chorou porque o texto a fez lembrar de suas próprias dores, percebi claramente o imenso poder da literatura em nos conectar profundamente com nossa própria humanidade.

Ivo Donayre: Sua experiência transita entre o jornalismo e a educação. Como essas áreas se complementam em sua prática?

Elô Baêta: O Jornalismo e a educação compartilham o compromisso com a verdade, a clareza e a transmissão acessível de conhecimentos. O jornalismo me ensinou a narrar fatos com responsabilidade, enquanto a educação me proporcionou métodos eficazes para ajudar outros a descobrirem suas próprias vozes.

Uma matéria jornalística é, na prática, uma forma didática de explicar acontecimentos complexos, tornando-os compreensíveis ao público geral. Da mesma forma, na sala de aula, o professor cria ementas e planos de aula objetivos e atrativos para envolver o aluno na aprendizagem. Essa harmonia natural entre as duas áreas tem sido essencial em minha abordagem pedagógica, permitindo-me aplicar experiências jornalísticas no ensino e vice-versa.

Ivo Donayre: Como você vivia a tensão entre a objetividade jornalística e a sensibilidade humana?

Elô Baêta: Apesar da exigência de objetividade e imparcialidade no Jornalismo, é inevitável que nossa sensibilidade humana permeie as entrelinhas dos textos. Valores pessoais, crenças e visões de mundo influenciam discretamente nossas escolhas narrativas, mesmo sem comprometer a ética. São decisões sutis sobre quais informações privilegiar ou como estruturar uma narrativa, refletindo implicitamente nossa percepção subjetiva. Esse delicado equilíbrio é o que torna a escrita jornalística profundamente humana, genuína e viva.

Ivo Donayre: Alguma reportagem marcou profundamente sua carreira?

Elô Baêta: Duas reportagens foram especialmente marcantes. A primeira foi “Uma tarde com Ruth Quintella”, perfil que escrevi sobre essa célebre escritora alagoana. Passei uma tarde inesquecível, conversando sobre sua obra, sua rotina criativa e os pequenos objetos simbólicos em sua mesa, como uma simples caixa onde guardava seus manuscritos e uma caneta bic preta, com a qual escrevia diariamente. A simplicidade e a profundidade dela eram tocantes e inspiradoras.

Outra reportagem foi “Ilustres desconhecidos”, um caderno especial sobre personagens e monumentos históricos pouco conhecidos de Maceió, que recebeu o Prêmio Braskem de Jornalismo. A profundidade da pesquisa e a importância histórica das descobertas feitas durante esse trabalho ainda ecoam fortemente em minha memória.

Ivo Donayre: O que mudou em sua escrita após tantos anos atuando como jornalista?

Elô Baêta: Com o tempo, minha escrita jornalística evoluiu para abraçar uma abordagem mais humanizada e literária, profundamente influenciada pelo Jornalismo Literário. Descobri que não basta informar; é essencial tocar o coração dos leitores, trazendo à tona as histórias que habitam por trás dos fatos. Essa visão literária do jornalismo intensificou minha responsabilidade e meu compromisso em revelar a essência mais profunda e humana dos acontecimentos.

Ivo Donayre: E na sala de aula universitária, qual é o significado de ensinar a escrita?

Elô Baêta: Ensinar a escrita significa estimular o prazer genuíno pela expressão pessoal dos alunos. É vê-los descobrir a escrita não apenas como obrigação acadêmica, mas como algo profundamente íntimo e gratificante. Ao propor exercícios ligados às suas vivências pessoais, testemunho frequentemente a transformação da escrita em uma atividade libertadora e essencialmente artística, que revela a identidade única de cada aluno.

Ivo Donayre: Como você percebe a evolução da escrita universitária nos últimos anos?

Elô Baêta: As teses e dissertações vêm se tornando um pouco mais vivas e autênticas, à medida que percebemos o posicionamento dos alunos muito mais visível e até criativos na construção de suas hipóteses e teorias. As instituições de ensino superior por onde passei e formei vínculos, como o Instituto João e Maria Aleixo (IJM), a Universidade Internacional das Periferias, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a própria Universidade Federal de Alagoas (Ufal), onde me formei bacharel em Jornalismo, no ano de 1993, e tive a oportunidade de participar de mesas acadêmicas sobre Jornalismo Cultural para estudantes de Comunicação Social, levo sempre a minha preocupação e o meu interesse para os alunos da consciência lúcida de que a escrita está presente em todas as áreas do conhecimento, sem exceção, e que precisam exercê-la com prazer e empenho.

Uma boa tática, logo nas primeiras aulas, é fazê-los experimentar os principais gêneros textuais acadêmicos: resumo, resenha, ensaio, fichamento, crítica literária, artigo científico etc., identificando suas tonalidades e desenvolvendo temáticas fora do eixo universitário. Isso os faz perceber sua capacidade textual crítica e dissertativa muito mais do que imaginam. Esse comprometimento com a escrita tem auxiliado também o acesso de mais estudantes a universidades públicas voltadas ao social, com vestibulares que incentivam a escrita literária até mesmo nas Propostas de Redação, fazendo com que os alunos expressem cada vez mais suas vozes, abandonando textos meramente técnicos, herméticos e fragmentados, sem personalidade criativa.

Ivo Donayre: Que transformações você testemunhou em seus alunos através da escrita?

Elô Baêta: Algumas experiências textuais foram bem marcantes. Mas o curioso é que tenho observado que as transformações ocorridas por meio da escrita dependem muito do ineditismo do tema. O que quero dizer com isto é que as temáticas inusitadas seduzem o aluno de tal forma que os levam a escrever com um magnetismo que muitas vezes eles mesmos desconhecem. Aos poucos, fui percebendo os efeitos da força temática na condução e no desembaraço da escrita que eles passam a apresentar. Certa vez, lancei a uma turma de Letras um desafio de escrita sobre como seus pais haviam se conhecido. Esta temática foi inesperada, causou um reboliço de entusiasmo nos alunos, justamente pelo tom de descoberta que precisavam decifrar nos pais para poder fazer nascer o texto. A ideia desse tema despertou neles não só um gosto pela escrita, como a importância da pesquisa para o exercício da boa escrita.

Assim, esse transformar vai aparecendo sutilmente, à medida que eles passam a observar e a escutar melhor tudo a sua volta, a considerar os detalhes dos acontecimentos, a refletir sobre as circunstâncias das coisas. Essa movimentação natural, espontânea, que acontece fluida na percepção dos escritores.

Ivo Donayre: Você também atua com oficinas de escrita em comunidades periféricas. Como esse trabalho começou?

Elô Baêta: Comecei em 2017, logo após o mestrado em Letras/Literatura, participando de um movimento social ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Um projeto de Educação Popular, com eixos de suas ações amplamente voltados à Pedagogia de Paulo Freire. Fazíamos da sala de aula um verdadeiro “palco” de militância ao pensamento crítico e ao caráter libertário e emancipador do conhecimento. Passei a ministrar aulas de Redação para alunos de diversas comunidades do Rio de Janeiro que ansiavam ingressar nas universidades públicas, com um método próprio, que desenvolvi no módulo “A arte de escrever uma redação: magia, poesia, saber e poder”. Passei também a introduzir novas maneiras de pensar a escrita como membro da coordenação em Linguagens e Círculos de cultura, levando discussões de cunho social como estimulantes ao pensar crítico que ansiávamos desenvolver por meio da escrita, da Filosofia e de outras ações.

Então, fui criando e desenvolvendo outros projetos ligados à escrita, como “Escritas periféricas: formação literária de jovens autores”, “Letras e identidades: a literatura como patrimônio comunitário”, “Pena em punho: o fenômeno literário na construção da identidade periférica, ministrado ao grupo carioca Literalmente elas, no ano de 2020; e a pesquisa acadêmica “A página literária do Jornal de Alagoas: culturalização da linguagem do escritor na Maceió modernista”, que resultou no livro “Poética da página: o nascer da literatura no Jornal de Alagoas”, minha primeira obra, publicada em 2023, na Bienal do Livro de Alagoas. Esses projetos foram ganhando vida em diversas instituições de ensino, incluindo o Observatório das Favelas. Uma das organizações sociais que mais me orgulha ter feito parte, voltada à atuação e à produção do conhecimento em diversas esferas, a fim de integrar políticas públicas, com sede no complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Ivo Donayre: Como a escrita impacta quem nunca foi ouvido?

Elô Baêta: A escrita é libertadora, emancipadora. Para as “massas” privadas de voz, a folha em branco torna-se uma espécie de palanque e o ato de escrever um microfone digno, pela primeira vez abrindo espaço as suas perspectivas e modos de ver. Um dos pontos mais desafiadores e tristonhos é constatar que essas vozes negadas simplesmente se arredam de suas próprias opiniões, desconectando-se do que pensam e sentem de tal maneira que vão perdendo cada vez mais o gosto por pensar de maneira crítica, ordenada e criativa.

Essas vozes silenciadas as encontramos quase sempre “esquecidas” nas comunidades e nos meios periféricos. Então, a escrita chega dando-lhes vida e capacidade de voz opinativa, fazendo-os “renascer” como indivíduos pensantes e importantes à sociedade. Expressar-se no papel, aos poucos, os faz recuperar tudo o que foram perdendo ao longo da vida, sobretudo a estima e o senso crítico. É impressionante o quanto escrever vai pouco a pouco demovendo a voz das minorias desse lugar negado, sombrio, invisível, recuperando a estima e fazendo-os sorrir e chorar enquanto escrevem. Dar voz por meio da escrita é um meio de arredar as letras e a literatura, cada vez mais e sempre, da condição elitista, excludente, inacessível, que por tantas décadas esteve sujeita. É uma forma de acessibilizá-las, democratizando-as como prática social, que é direito de todos, indistintamente. E isso só se torna possível quando a popularizamos, entregando-a com maestria nas mãos do povo.        

Ivo Donayre: Já se emocionou com histórias escritas por alunos dessas comunidades?

Elô Baêta: Sempre. Certa vez, um aluno escreveu um texto sobre seus dilemas internos chamado “Paredes”, que levou toda a turma às lágrimas ao descrever sentimentos profundos de injustiça e desonra social. Já me caíram em mãos uma infinidade de textos de muita sensibilidade e qualidade literária. Recordo-me apenas de algumas temáticas sensíveis, como “Sou o abraço”; “Toque as minhas mãos”; “Quero lhe ver, sorriso”; “Só ao papel conto” e outras experiências assim: potentes, convidativas, a definirem com palavras sensações e sentimentos só experienciados com os nossos cinco sentidos, mas quase nunca definidos ou descritos com palavras. Todos eles resultaram em escritas poderosas, brotando de gêneros mais autônomos, como a carta, o diário e até bilhetes. Escreviam à mão, fazíamos a leitura e os devolvia para que um dia pudessem publicá-los.   

Ivo Donayre: Você idealizou o projeto “Casa do Escritor”. Como surgiu essa ideia?

Elô Baêta: Foi um desafio apaixonante, inspirado em um curso anterior, o “Jovem-escritor, autoria e criação”. A “Casa do escritor” foi vindo pouco a pouco a minha inspiração, nesse desejo missionário que sempre me acompanha de promover a escrita e a literatura para todos.

A “casa” abre-se a um ideal democratizado e popularizado da arte de escrever, fazendo parte da vida e do viver das pessoas cotidianamente, podendo ter com ela um convívio prático sedutor, irresistível, sem limite de vozes nem de horizontes. É uma recepção ao sentir-se em casa com a palavra e ao mesmo tempo a palavra sentida como um aconchego de casa. Não há lugar mais aconchegante, onde nos sentimos mais acolhidos, do que a nossa própria casa. 

Fui imaginando uma “casa” com cômodos que representam diferentes etapas do processo criativo. É um espaço onde os participantes vivem profundamente a escrita, sentindo-se plenamente à vontade com ela e a folha em branco. Um lugar de convivência com a escrita exatamente assim, caseira, dia a dia, com os ambientes literários sendo acessados como um elo entre o escritor e os desafios de escrita que compõem toda a “casa”. Cada um deles inspirado no conteúdo do curso “Jovem-escritor: autoria e criação”, que já passou tanto por universidades e comunidades literárias como por escolas municipais e estaduais.

Para essa convivência íntima, estreita, com o texto escrito, os temas das minhas aulas foram levados a cada ambiente virtual, com as vivências dos conteúdos sobre escrita e linguagem literária dentro dos cômodos, selando a prática intensa e sedutora que a “Casa do escritor” deseja propiciar aos seus autores. A ideia é que os participantes possam experimentar uma estadia acolhedora por lá, vivendo uma sedutora vida de escritor, simplesmente escrevendo…

Ivo Donayre: Como a estrutura da Casa se conecta ao processo interior da escrita?

Elô Baêta: Cada cômodo da “casa” acolhe o visitante como se fosse um convidado querido, proporcionando conforto emocional para que possam escrever com liberdade e profundidade. A “Casa do Escritor” é um convite ao artesanato da escrita, onde alma, olho e mão se encontram. A alma que sente, o olho que observa e a mão que escreve, fazendo da folha em branco um elo conjunto com nós mesmos e as impressões do mundo ao nosso redor. Estar na “casa” é experimentar a relação indissolúvel entre a escrita e as experiências humanas, as memórias e a imaginação e as confissões e voz da ficção. 

Nos seus ambientes virtuais-literários: o Gabinete das letras; o Confessionário de criação; o Salão de prosa; as Estantes de Biblioterapia; as salas Rotas do autor, Ponta de Língua, Sarau minhas histórias, Lições poéticas e “Diário do escritor”, os participantes se transformam em narradores e compositores de suas próprias histórias, em conexões com a essência da escrita e das narrativas literárias como arte e como exercício íntimo e social, capaz de transformar, eternizar e imortalizar o pensamento e ideais humanos. Uma deliciosa “brincadeira” com a prática da escrita e “ser escritor”.  

Ivo Donayre: Para finalizar, a escrita pode ser resistência?

Elô Baêta: Certamente. A escrita é uma rebelião elegante, uma insurreição discreta, que nos permite sonhar livremente. Ninguém consegue calar a voz da escrita, ela é imortal. É libertador quando a descobrimos como um direito digno, coletivo e individual ao mesmo tempo, e o seu caráter justo e igualitário. É um instrumento de absoluta resistência, à medida que a entendemos como lança de poder e saber e como caminho sempre democrático e aberto à liberdade de sermos que realmente somos. A escrita nos permite libertar o que está preso em nós e nos leva a voar e a sonhar, sem impedimentos. Ao papel, podemos revelar, questionar, debater, opinar, indignar-se ou admirar-me com o que bem quiser e entender. Não há quem contenha a força de expressão e atenção que a expressão na folha em branco nos faz sentir. A resistência da escrita é imparável. É assunto para volumes e mais volumes de coleções infindas, em milênios de anos.

Ivo Donayre: Que mensagem você deixa para quem sente que tem algo a escrever, mas ainda não começou?

Elô Baêta: Escreva diariamente, sem medo ou julgamento. Apenas escute a voz interna que o impulsiona à escrita. Cada palavra colocada no papel abre novos caminhos. Algo mágico ocorre quando aceitamos esse convite silencioso para expressar nossos pensamentos. Observe o mundo ao redor, permita-se captar inspirações cotidianas e simplesmente escreva. Um universo único e pessoal nascerá dessa prática.

Ao fim da entrevista, guardamos um silêncio confortável e contemplativo por alguns instantes. Do outro lado da mesa, o olhar de Elô parecia revelar tudo o que havíamos falado e, talvez, até o que não conseguimos expressar em palavras. Lá fora, o céu de Barra de Jequiá começava a assumir aquele tom dourado de fim de tarde, um espetáculo silencioso que parecia encerrar nossa conversa com uma nota de poesia.

Ainda tínhamos tantas histórias por contar e ouvir, tantas reflexões a compartilhar. Com gratidão imensa pela acolhida e pela generosidade das palavras, levantamo-nos lentamente. Caminhamos um pouco pelas ruas pacatas, enquanto crianças brincavam sob a sombra das mangueiras e pescadores preparavam suas redes, em rituais que pareciam atravessar o tempo.

Quando chegou o momento de despedir-me, senti um aperto delicado no coração, um desejo intenso de permanecer naquele ritmo tranquilo, longe das urgências cotidianas de São Paulo. Mas o dever me chamava, e precisava retornar.

No trajeto de volta, enquanto dirigia pelas estradas sinuosas até Maceió, não conseguia parar de pensar em tudo o que havia aprendido nesses dias com Elô. Já no avião, olhando pela janela e observando Alagoas se distanciar sob as nuvens, sorri com satisfação: eu estava voltando com algo muito maior que uma simples entrevista. Retornava com o espírito renovado pela certeza de que a escrita é, de fato, uma missão transformadora, capaz de criar mundos e recriar vidas.

E enquanto aterrissava em São Paulo, uma promessa silenciosa firmou-se em mim: em breve eu voltaria. Retornaria à Barra de Jequiá para novamente viver e me inspirar naquele pequeno pedaço de paraíso. Afinal, como aprendi com Elô, cada escritor precisa de um lugar onde as palavras se tornem vivas — e aquele, sem dúvida, havia se tornado o meu.