O racismo velado na sociedade contemporânea
Hoje finalizei o livro “o ódio que você semeia” (The hate u give) e fiquei boquiaberta com a reflexão profunda que a história deixou. Angie Thomas, uma escritora norte-americana de romances YA (jovem adulto) não fez apenas uma denúncia com esse livro, mas mostrou ao mundo como o racismo cultural ainda é forte em países como os EUA e é por isso que, além de ser sucesso imediato, deve ser lido por todos!
O livro começa quando Starr é obrigada a ir a uma festa por sua amiga, Kenya, para ajudar a dar uma lição em uma garota. Starr odeia festas e não consegue se enturmar com os outros adolescentes onde vive por dois grandes motivos: primeiro, porque sempre será vista como princesa, já que seu pai foi “rei” no passado e ainda é conhecido pelo tráfico de drogas local, e segundo, porque, para deixar esse passado para trás, seus pais a colocaram em um colégio particular onde Starr é a única garota negra de seu ciclo (e uma das poucas do colégio). Por sorte, ela acaba encontrando seu amigo de infância, Khalil, e ele a salva de ficar sozinha em um canto na festa, mas logo a diversão é interrompida por um tiroteio e eles fogem. Khalil decide dar uma carona à Starr, mas o que ela não sabia é o quanto essa carona mudaria sua vida.
No meio do caminho, Khalil é parado por um policial, sem motivo aparente, e morto. Apenas Starr estava no carro ao seu lado e viu tudo acontecer de perto. A partir daí, se inicia uma busca policial não para fazer justiça por Khalil, mas para proteger o policial que “apenas cumpriu seu trabalho”.
A trama principal do livro gira em torno de Starr lutando contra chantagens e ameaças para proteger a verdade sobre seu amigo. Durante a maior parte do tempo, os policiais tentam distorcer a realidade e usar o fato de Khalil vender drogas para ajudar o tratamento de câncer de sua avó e cuidar de seu irmão como argumento para seu assassinato, mas, apesar do erro de Khalil, sua morte nada teve a ver com isso. Com esse acontecimento, Starr percebe ainda mais o abismo que ainda existe entre negros e brancos e como o racismo ainda impera, mesmo que escondido sob outros argumentos. Por esse motivo, ela tem medo de contar aos seus pais sobre seu namorado, Chris, que é branco e tem olhos claros e vive em uma mansão, mas que ainda a faz rir com frases de Um maluco no pedaço, a série favorita de ambos.
Acontecimentos como os do livro retratam cenas cotidianas para muitos de nós. Alegamos não conviver mais com o racismo e fazer parte de uma sociedade cada vez mais livre de preconceitos, mas basta saber que há cerca de dois meses, no Rio Grande do Sul, um negro foi espancado até a morte por funcionários do Carrefour Porto Alegre, ou que Mari Ferrer, mesmo com provas incontestáveis de estupro, foi responsabilizada por sofrer assédio. As lutas das minorias são ditas desnecessárias e até mesmo ridicularizadas, assim como foi o feminismo durante muito tempo, mas essas situações nos fazem lembrar por que ainda precisamos desses movimentos em uma sociedade tão “desenvolvida”.
Para quem não convive com essa realidade, deve ser difícil acreditar que o racismo ainda seja tão forte. Afinal, vários de nós, pessoas de bem, não fazemos distinção de pessoas por raça e gênero, como outros ainda o podem fazer? Como colocado por Rochester Oliveira Araújo em seu texto O elo da escravidão e o racismo contemporâneo, “O racismo é um fenômeno atual. Isso não nega a sua origem no regime escravocrata, mas, ao contrário, reconhece que apesar de se ter findado com o regime de exploração escravocrata – da forma tradicional, reconhecida formalmente pelas instituições como legítimo – o racismo se perpetua. Há uma atualização do racismo que se dissocia da escravidão. Não podemos contemplar o fim da escravidão e acreditar que com ela o racismo teria morrido, sobrando-se eventuais episódios inadequados que devam ser enterrados juntos a partir de uma “civilidade moderna”. A civilidade moderna é racista. É isso que torna o racismo estrutural: a sua atualização como condição para o regime capitalista contemporâneo.”
Se você não se lembra de vivenciar situações de violência racial ou ideológica, pode começar a prestar atenção nos pequenos racismos cometido no dia a dia: “baianice”, “coisa de preto”, “cabelo ruim”, “dia de branco”, pequenas “piadas” racistas que fazem parte do cotidiano de muitas pessoas e que você, certamente, já ouviu pelo menos uma vez. Quando usamos uma raça ou ideologia de forma pejorativa, estamos, sim, sendo racistas, homofóbicos, transfóbicos, misóginos e afins.
É importante continuar discutindo como esses pequenos ideais ainda vivem em nossa sociedade para entendermos como quebrar essas correntes. Muitas das ações preconceituosas que cometemos nem mesmo são pensadas, elas vêm de outras gerações, de nossos familiares, que também não sabem que isso é preconceito. No livro, Starr nunca fala gírias ou fala de uma maneira incorreta em sua escola de crianças brancas porque não quer parece “do gueto”. Desde cedo ela foi ensinada o que fazer quando for parada por um policial, pois seus pais esperavam que uma criança negra passaria por isso em algum momento. Até quando precisaremos ensinar as pessoas que amamos a se defenderem dos pequenos preconceitos sofridos diariamente em vez de ensinar a sociedade a não cometê-los?
Diferente de O sol é para todos, em O ódio que você semeia, a protagonista sabe o tempo todo que o racismo existe e que as pessoas não são todas iguais. Ela sabe que seu amigo sofreu um grande preconceito e que a punição será difícil e ela será culpada em algum momento, mas ela acredita na justiça e no bem prevalecendo o mal. E, afinal, não é o que todos acreditamos?