Ilustração: Gino Tavares
De Pelejas e Amores
Aconteceu com o rapaz nos seus 15 anos completados, já bem perto dos 16. Indo à feira religiosamente somente para espichar os olhos para a more-ninha chamada Maria, filha de seu Antônio. Todo sábado ele chegava no Junqueiro dirigindo sua caminhonete Chevrolet com a carroceria lotada e duas filhas na boleia: duas pérolas de formosas, que eram ao mesmo tempo assistentes e enfeites. E elas enfeitavam mesmo! Tanto a paisagem que cercava seu Antônio, quanto a feira toda, fazendo brilhar os olhos de rapazotes e marmanjos. Mas o rapaz imberbe nunca espiou direito a outra irmã, que ele nem sabia se era mais nova ou um tico mais antiga de nascença, porque, no que ele viu Maria pela primeira vez, tudo que estava em volta dela ficava borrado, turvo. E ele nunca achou aquilo um defeito de sua vista ou de seu juízo, porque o defeito era mesmo de quem ficava perto dela.
E depois ele foi reparar atentamente aquelas coisas todas, espalhadas sobre a lona estendida no calçamento do largo da prefeitura, e aquelas outras mercadorias mais finas expostas na banca e penduradas sob a cobertura. Numa e noutra, banca e lona, louças de barro de Lagoa da Canoa, boizinhos e cavalinhos de barro do Carrapicho, Sergipe, carrinhos de madeira, papeiros de alumínio, bainhas para peixeiras e peixeiras de polegadas variadas, canivetes, anzóis, chumbinho e espoletas para espingardas, soca-tempero, pilões, coldres e cartucheiras para revólveres, alpercatas de couro, candeeiros de estanho, espelhos, estampas de santos, rosários do Juazeiro do Padre Cícero e uma infinidade de miudezas finas e grossas. Sortimento igual não havia.
E seu Antônio, por causa disso, da Chevrolet e das estampas finas das filhas morenas, era um dos ricaços daquela feira.
Mas o rapazote mais fixou os olhos foi nos folhetos de cordel estendidos no varal, na cordinha amarrada de trave a trave. Porque naquela idade ele já não brincava mais com boizinhos e carrinhos, nem gostava de matar passarinhos, nem queria andar armado de peixeira ou canivete.
O pai sempre falou que homem que anda acompanhado de jagunço ou com faca e revólver na cintura não presta. Se usa é porque foi, é ou será criminoso na primeira oportunidade.
Espelho e pente para ficar vistoso, sim! Anzóis para pescarias no riacho Piauí, também! Mas essas mercadorias eram do tipo escolhe, pega, embrulha, paga e leva. Ele não ia cair na besteira te entabular conversa com a formosa Maria para falar de corte de cabelo, marca de brilhantina ou tamanho de anzol.
E nem contar histórias de suas pescarias. Não queria parecer besta e enfadonho. E foi por isso mesmo que suas vistas pareceram hipnotizadas pelos livros de cordel, que davam o mote para prosas sobre amores, valentias sertanejas e valentias medievais, aventuras, viagens, acontecimentos patrióticos e religiosos.
Ele então decidiu que daí por diante não seria mais freguês da tenda de seu Imaginário – Maginaro -, o vendedor de cordel, mimos religiosos diversos e da banha de ema que curava de dores reumáticas a feridas brabas.
E os cruzeiros que ele ajuntava fazendo mandados para uns e outros e dando aulas para meninos mais novos ou quase galalaus do ginásio, em segunda época, iriam parar na algibeira de seu Antônio. .
O primeiro contato dele com Maria demorou a acontecer porque, para seu azar, a outra irmã era quem estava na banca, enquanto sua pretendida não parava, em andanças de um lado a outro, atendendo a farta freguesia de citadinos e matutos ao lado do pai. Única vantagem disso era que sua cor mestiça mais se acentuava e a formosura mais realçava.
E enquanto ele ia acumulando economias a espera do momento ideal, não deixava de dar sua passada naquele ponto, semanalmente, para limpar a vista de olho nos traços, no sorriso, nos cabelos e até nas batatas das pernas da mocinha formosa, que eram muito bem desenhadas. E nessa gastura à espera pelo momento em que ela assumisse a tenda, ele passou algumas semanas. Sem tirá-la dos pensamentos e exercitando versos em sextilhas, aprendidos de ouvido, de tanto escutar e aprender rimas e métricas com os violeiros da feira:
Maria de seu Antônio
é uma lindeza só!
Morena igual aquela
não tem nem no Maceió.
Se eu não falar com ela
vou sofrer de fazer dó.
Ou em martelo alagoano, conforme também ouvia dos cantadores:
Se eu ficar sem aquela moreninha
minha vida será um sofrimento!
Nada fiz que mereça esse tormento.
A Deus peço que salve a alma minha
que ao pior purgatório se encaminha.
Então rogo ao nobre soberano
que se finde meu triste desengano
de viver uma eterna desventura.
E que logo acabe essa tortura
nos dez pés de martelo alagoano!
A força das súplicas versadas em louvor a Deus e ao amor realizaram parcialmente seus desejos. Pelo menos a versada em sextilha. A irmã (que ele não sabia se era de mais ou menos idade que ela), por algum motivo foi substituída por outra em quem ele nem reparou, porque ancho estava e emocionado também porque agora ia poder se aproximar dela. E foi chegando de mansinho até encostar na banca, ficando a espiar os folhetos, esperando a abordagem da vendedora: – O freguês quer um folheto? Ele tremeu e gaguejou antes de responder, mas conseguiu falar que queria espiar mais. E ela respostou para ele ficar à vontade e se desviou para atender uma freguesa que apontava o dedo para uns frascos de perfumarias. E, quando voltou, pareceu prestar mais atenção nele e perguntou se ele gostava mais de folhetos de pelejas ou de amores. Ele respondeu que era de um tudo, porque a pessoa para viver no mundo por tudo deve se interessar. Ela riu da resposta e foi mostrar o que era já conhecido e o que era novidade. Ele ouvia parecendo hipnotizado, olhando a moça morena bem de pertinho pela sua primeira vez.
Mais duas vezes em dois outros sábados, com ele se achando o tal e traçando planos de futuro, porque a simpatia dela era evidente. Mais um bocadinho de tempo e a coragem necessária acumulada era somente o que faltava para ele destinar a ela as palavras de amor e o pedido de namoro. Mesmo que tivesse que enfrentar seu Antônio com suas posses todas e seus ares de homem severo. Mas ele enganou-se, porque no prazo dado de si para si, quando chegou na feira estava o canto mais vazio. Não de seu Antônio nem de duas filhas nem daquelas mercadorias todas. O vazio era de Maria, substituída por outra irmã de quem ele também não quis sequer saber o nome. Mas o motivo da ausência ele quis saber porque precisava, antes que morresse de gastura.
E de tanto inquirir outros e uns sobre Maria, ele soube do triste sucedido: um representante de mercadorias industrializadas diversas, muito vistoso e de modos e falas diferentes dali, por ser fornecedor para o armazém de seu Antônio em Arapiraca, um dia avistou Maria. E começaram os mimos e salamaleques. Tantos ele fez que um dia a mocinha disse o sim e nas caladas da noite, clandestina, fugiu com o sujeito.
Dez anos depois, em Quebrângulo, ele estava na feira quando de longe avistou a morena despachando na banca repleta de miudezas diversas, além de apetrechos de trabalho e folhetos de cordel. E quando foi chegando mais perto, paralisou. Porque era mesmo ela com a formosura dobrada pelos anos. E a perdição recomeçou…