“Talvez haja apenas um pecado capital: a impaciência. Devido à impaciência, fomos expulsos do paraíso; devido à impaciência, não podemos voltar.”
Franz Kafka nasceu em Praga, atual República Tcheca, em 1883. É considerado um dos principais escritores da literatura moderna, com obras que retratam ansiedade e alienação do ser humano do século XX.
Kafka teve uma vida emocional conturbada, com noivados e amores incertos e uma enorme intimidação sofrida pelo pai, fatos que marcaram sua escrita e a temática de suas obras. Tanto sua primeira obra, Descrição de uma luta, quanto seus Diários narram uma existência perturbada, cheia de medo e lutas sem vitórias.
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”
Baseando-se nessa existência conturbada, Kafka escreveu o que se tornaria um dos maiores clássicos da literatura moderna e um grande reflexo de como a sociedade foi oprimida sem ao menos se dar conta: A metamorfose. Nesse livro, Gregório, um homem comum e trabalhador, sem expectativas de felicidade e vivendo apenas para cumprir seus deveres, falta ao trabalho em um dia qualquer. Seu chefe vai até sua casa para saber o motivo. Não tendo ninguém tomado a iniciativa, o próprio Gregório consegue abrir a porta do quarto e todos encontram não o homem, mas um inseto gigante, parecido a uma barata.
De início, Gregório fica completamente excluído da família, mas com o passar do tempo, esta passa a deixar a porta de seu quarto aberta, para que possa acompanhar o dia a dia de seus familiares. Com a falta de trabalho, a família passa a alugar a casa e tanto eles como Gregório ficam cada vez mais excluídos de sua rotina. Ao descobrir o inseto gigante, os inquilinos ameaçam processar a família. O que ocorre é a expulsão dos inquilinos pelo pai de Gregório, que passa a trata-lo como um animal, não mais um filho. O fim trágico de Gregório se dá pelo fato de não possuir mais utilidade social e, portanto, nenhuma utilidade familiar.
O mais curioso nessa história é que a preocupação de Gregório não é ter se tornado um inseto, ou o medo de perder sua forma e humanidade, mas sim não ter condições de trabalhar. As preocupações da obra são completamente as financeiras e, sem Gregório para sustentar a casa, todos passam a trabalhar. A irmã de Gregório era a única que intercedia por ele, mas, após perderem os inquilinos, até ela sugere que se livrem dele.
“- Ele tem que ir embora! – gritou a irmã. – É o único jeito, pai. O senhor precisa se desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante tanto tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito tempo teriam percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele e teria partido por conta própria.”
Existem várias interpretações sobre como a situação de Gregório se mostra. A mais triste e mais assertiva talvez seja a de que, ao perder nosso valor social e de produzir socialmente, nossa existência perde o valor para todos. A partir do momento que não conseguimos cumprir nosso papel como provedores, nos tornamos insetos, sanguessugas, pessoas sem valor algum. Perdemos nossa humanidade dentro de nossa própria casa, isso também reflete o quanto somos estranhos às nossas famílias. Quantos de nós realmente conhecemos nossos familiares ou somos conhecidos por eles? Quantos de nós sabemos os dons e talentos das pessoas que dizemos amar? Muitas vezes vivemos com estranhos e como estranhos e, em uma sociedade que cobra cada vez mais, muitas vezes não sabemos quem somos.
“- E agora? – perguntou Gregório a si mesmo, relanceando os olhos pela escuridão. Não tardou em descobrir que não podia mexer as pernas. Isto não o surpreendeu, pois o que achava pouco natural era que alguma vezes tivesse sido capaz de aguentar-se em cima daquelas frágeis perninhas. Tirando isso, sentia-se relativamente bem. É certo que lhe doía o corpo todo, mas parecia-lhe que a dor estava a diminuir e que em breve desaparecia. A maçã podre e a zona inflamada do dorso em torno dela quase não o incomodavam. Pensou na família com ternura e amor. A sua decisão de partir era, se possível, ainda mais firme do que a da irmã. Deixou-se ficar naquele estado de vaga e calma meditação até o relógio da torre bater as três da manhã. Uma vez mais, os primeiros alvores do mundo que havia para além da janela penetraram-lhe a consciência. Depois, a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e soltou-se-lhe pelas narinas um último e débil suspiro.”
Ao descobrir a morte de Gregório, seu pai responde com “Graças a Deus”. Finalmente aquele ser improdutivo havia partido. Não importa se ele sustentara a família em momentos difíceis, nem que fosse um bom filho ou irmão, o que importava era que não precisariam mais dividir a casa com um ser repugnante.
Em sua obra-prima, Kafka traz uma profunda reflexão sobre o que somos aos olhos da sociedade. Também podemos ver esta obra como um aviso para realmente pensar no que é importante, abraçar nossas famílias e não valorizar apenas o lado material. Tanto a família quanto Gregório têm sua parcela de culpa, um por não mostrar-se além do provedor, outro por não entender a tarefa do primeiro. Pensemos em uma sociedade mais humana, onde seres humanos tenham mais valor do que números! Com essas mudanças, nos afastaremos cada vez mais da realidade de Kafka e caminharemos para um mundo melhor.