O velho João estava habituado à solidão e ao conforto de ter tudo sob seu controle. Coisas da idade, dizia. Ainda mais agora que trabalhava em home office e nem precisava sair de casa. Orgulhava-se da excelente saúde — não tomava remédio algum — e dedicava-se a controlar a comida e a bebida, mas apenas no que dizia respeito à quantidade e à qualidade dos alimentos. Outro dia conversara, no SmartFit, com um amigo da mesma idade, que confessara se preocupar com a “química fina” dos alimentos; João chegou a perguntar ao amigo, Paulo, o que exatamente significava essa tal “química fina”, e recebeu uma explicação que o impressionou pela lucidez: tratava-se do cuidado atento ao funcionamento dos rins, que exigiam dele uma dieta precisa — evitar alimentos ricos em potássio, controlar a creatinina produzida pelas proteínas, reduzir sal, moderar líquidos e até ferver frutas e legumes para eliminar excessos. Uma vigilância silenciosa, quase científica, que revelava como o corpo, quando escutado com delicadeza, orienta o próprio caminho. João admirava esse zelo: havia nisso uma disciplina que, longe de ser fragilidade, era força interior.. Paulo, um verdadeiro alquimista.
Dentro desse equilíbrio, concentrado na sua leitura, desgostava dos imprevistos — sobretudo do barulho que entrava frequentemente pela janela do apartamento. Morava num bairro urbano, cercado de comércio, bares e restaurantes, e o burburinho era constante — carros passando, buzinando, caminhões de entrega, motos com escapamento aberto. Gostava de frequentar restaurantes, mas se arrependia quando a mesa ao lado explodia em gargalhadas estridentes. Mudava de mesa quando podia; quando não, resignava-se.
Tudo corria com a previsibilidade confortável de sempre, até receber uma ligação da filha, Luísa, que morava em outra cidade. Ela avisava que viria para um evento profissional que seria no fim de semana e que ficaria hospedada em seu apartamento. No início, preocupou-se com o lugar onde ela dormiria. Pensou em um quarto em especial, mas estava cheio de objetos espalhados por todo lugar. Como arrumá-lo? Havia ali caixas espalhadas pelo chão, objetos acumulados ao longo do tempo, e seria necessário mover tudo, guardar, empilhar, reorganizar. Avisou a esposa, Marta e às funcionárias da novidade. Todas se alegraram instantaneamente.
Percebeu, porém, que preparar aquele quarto seria uma tarefa praticamente impossível. Então pensou no próprio escritório — seu refúgio diário. Sentiu um leve receio: perderia por um dia o trânsito natural daquele espaço, o ambiente onde escrevia, meditava, lia, onde sua poltrona ficava voltada para a estante de livros que lhe era tão significativa. Era ali que cultivava seu equilíbrio interior.
Conversou novamente com todos e decidiu: Luísa ficaria no escritório. Ainda cogitou remover a poltrona e levá-la para a sala, abrindo espaço para um colchão no chão. Uma das ajudantes, porém, lembrou que havia uma cama guardada sob a cama das cuidadoras — uma cama leve, prática, facilmente transportável até o escritório, que ficava a poucos metros dali. Perfeito. Tudo se arranjou rapidamente. A filha era querida por todos. Combinado assim, João pediu apenas que não esquecessem lençóis e travesseiro.
Depois do almoço, ao entrar no escritório, ele percebeu que a poltrona já fora movida para o lado oposto da parede, abrindo espaço onde a cama fora colocada. A disposição ficara harmoniosa. Sentou-se na poltrona para contemplar a cena quando a gata Nina subiu na cama — ela adorava camas, sobretudo quando alguém mexia em lençóis e cobertores. A gata fez suas acrobacias, virou de barriga para cima, cabeça pendendo, pedindo carinho, aprovação e anunciando silenciosamente que aquele era um bom lugar para ela… e para a convidada que chegaria no dia seguinte.
Nina, afinal, era mais do que uma gata: era a pequena guardiã da casa, a companheira que escolhera aquela família com a naturalidade majestosa dos animais que sabem onde pertencem. Participava de tudo sem jamais exigir nada, aparecendo nos momentos decisivos como se reconhecesse, com sua sabedoria felina, a delicadeza das transições humanas. João sempre dizia que ela percebia antes dele o que estava por acontecer — e, naquela tarde, o modo como circundou a cama nova parecia selar, à sua maneira silenciosa, o acolhimento que todos preparavam para a hóspede querida.
Houve ainda necessidade de pequenos reparos no chuveiro do banheiro privativo do escritório. Muito antes, aquele espaço fora moradia dos pais e fora o quarto da Marta, que ali viveu até o casamento comigo, quando ambos se mudaram. A cama instalada agora estava exatamente onde ficava a cama dela antigamente. O tempo parecia dar voltas suaves e trazer memórias.
Tudo pronto: cama, lençóis, travesseiros, cobertores, banheiro arrumado. Restava a chegada da filha. Até lá, João continuou usando o escritório como sempre, ainda que com o pressentimento doce da entrega.
E o dia chegou. Luísa desembarcou no aeroporto cedo, e foi direto ao escritório da empresa — assim haviam combinado — e só veio para casa à noite. Chegou exausta, mas radiante. Foi recebida por João e pela Marta, e a conversa foi imediata, cheia de lembranças, histórias, afetos e novidades da vida na outra cidade.
Resolveram sair para jantar, ideia da Marta — queriam celebrar. Foram a uma famosa pizzaria que sempre lotava, considerada a melhor da região. Lá, João e a esposa eram recebidos com carinho por garçons que já os conheciam. Queriam compartilhar esse ambiente acolhedor com Luísa, para conversar à vontade, rir, escutar, reencontrar o fio da convivência. E assim ficaram até o último pedaço de pizza; conversaram tanto que, ao saírem, muitas mesas já estavam vazias. Uma noite fantástica.
Voltaram para casa. Luísa foi dormir imediatamente. Marta foi depois. João, fiel ao hábito de cinéfilo, ainda quis ver um filme, mas logo foi dormir também. Sentiu, no íntimo, a ausência do ritual noturno no escritório — seus exercícios espirituais, sua poltrona, sua rotina silenciosa — mas nenhuma dessas renúncias lhe pesou. A casa estava completa com a presença da hóspede.
A noite transcorreu tranquila. Pela manhã souberam que a gata Nina dormira com Luísa, algo natural, já que a filha também convivia com vários gatos em sua própria casa. Chegou o momento da despedida. Ela voltaria para sua cidade. Tinha sido um fim de semana simples, mas profundamente afetuoso. Para o velho, abrir seu espaço — e seu silêncio — para aquela alma jovem era como abrir a própria vida. Ficaram todos com o desejo de que Luísa voltasse mais vezes e ficasse mais tempo. A casa parecia maior quando ela estava ali.




Que linda crônica. De grande sensibilidade. A amor por vezes pede renúncia. Para receber alguém, em sua casa ou no seu coração, é preciso abrir espaço, arrastar móveis, mudar a rotina. E vale a pena porque a alma não é pequena.
Verdade. Parece que sempre queremos mais e mais e mais sem perceber que já temos tudo.
Uma crônica de um dia simples e feliz, onde o exercício de ceder o espaço para receber afeto demonstra como pode ser prazeroso o fluxo natural do cotidiano.