Quando um livro nos pega de surpresa, e nos marca com suas palavras como espadas, ou como beijos estalados, e nos faz cair de amores, não tem jeito, melhor é se fazer de solteiro de poesia e prosa, abandonar tudo por um tempo, e viver esse amor. E quem vive com os livros sabe que esses que te pegam podem aparecer quando menos se espera.

Alguns livros são tão conhecidos e tão amados que é covardia, a gente começa e já sabe, não tem jeito, precisamos viver essa história até o fim…. das letras.

Então falemos de alguns deles, de literatura regionalista, do cordel de João Cabral de Melo Neto, de prosa cheia de poesia do sertão mineiro de Guimarães Rosa e do livro que hoje nos pegou de supetão, de Niágara da Cruz Vieira.

Mas vamos começar com João Cabral e sua imortal “Morte e Vida Severina”. Não temos espaço aqui para explicar o livro e tudo o que ele representa sobre a realidade nordestina. Muito menos vamos nos debruçar sobre o que significa para a arte literária brasileira, este poeta engenheiro que constrói versos como quem assenta tijolos.

Vamos falar um pouquinho só da poesia de “Morte e Vida Severina”. Severino, o personagem principal, para quem ainda não leu a obra, é um anônimo, não tem nada de diferente, trata-se de um “Severino” como ele mesmo diz, sem sobrenome nem nada. É um “retirante” que faz o caminho do sertão até a o litoral. Ele se desloca atrás de uma esperança, uma vida melhor, um mundo melhor, que ele espera encontrar no caminho, ou no fim da viagem, no mar. Em seu relato ele é como tantos outros “Severinos”, segundo suas palavras:

…“somos muitos severinos

iguais em tudo na vida:

Na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra”

E como tantos “severinos” ele foge da seca e da fome, mas só encontra morte em sua fuga. Encontra morte por fome um pouco a cada dia, morte por emboscada e morte por velhice que mata antes dos 30 anos. Ele pensa até em se matar, quando chega ao litoral e vê a morte de novo, nos homens cobertos de lama caçando caranguejos no mangue, sem esperança e sem felicidade alguma, presente ou futura.

…”A solução é apressar

a morte a que se decida…

… caixão macio de lama,

Mortalha macia e líquida”

Nesse momento que parece que a morte vai vencer finalmente, encontra José, um morador do mangue, com quem conversa sobre sua miserável vida e sobre a viagem que só lhe mostrou a morte.

Mas então chegam os vizinhos e anunciam o nascimento do filho de José.

A epifania anunciada por José é uma clara referência ao nascimento de Jesus:

 “E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida;

vê-la desfiar seu fio,

que também chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena”…

E por aqui nos despedimos de Severino com sua nova visão da vida, e vamos brevemente para “Conversa de bois”, o conto mais poético do livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Seu realismo fantástico nos segura da primeira à última palavra sem pena. É muito difícil encarar Sagarana e deixa-lo pela metade. Ou você larga no primeiro conto, ou você vai até o fim, irremediavelmente.

Mas “Conversa de bois” é uma fábula cheia de poesia, ainda que o tema seja cruel. Não vamos contar o “causo” contado por Rosa, e nem o desfecho, mas trazer só um pouquinho desses bois que “falam entre si”, e do menino Tiãozinho, que parece que até entende a fala deles. Bois que falam não com palavras que humanos entendem, e nem pensam como humanos, mas como bois. Falam, segundo os que entendem de literatura, como falariam os bois se falassem, e pensam “com pensamento de boi” e até “sentem como bois”. Eles tem pena de Tiãozinho, ao qual chamam “bezerro de homem que caminha sempre na frente dos bois”.

E vamos lá com a filosófica poesia dos bois de Guimarães Rosa:

“É preciso andar e olhar p’ra conhecer o pasto bem…”

“Vocês não fazem como eu, só por que são bois bobos, que vivem no escuro, e nunca sabem por que estão fazendo coisa e coisa.”

Os bois percebem da dor do menino com a morte do pai e com o seu próprio destino, e decidem ajuda-lo, quando dizem…

 “O bezerro de homem que caminha adiante vai caminhando devagar… Ele está babando água dos olhos”.

Deixamos ainda que a contragosto os contos de Sagarana, mas por uma boa causa, na verdade boa e surpreendente leitura.

E este pequeno livro de Niágara da Cruz Vieira vem parar aqui neste artigo porque é poesia pura, porque o tema é o Nordeste e a seca, e a morte e a vida, e porque merece estar aqui junto com as grandes obras que comentamos acima.

“Lua de Couro” é pequeno, sim, mas vai te emocionar e te deixar pensando, e quem sabe, mudar algo em você, como todos os livros bons nos fazem. E as ilustrações de Leandro Segga são um capítulo à parte: delicadas, fortes e autênticas. Merecem muito fazer parte deste livro.

Um pouco sobre a autora ajuda a entender como diz tanto em tão pouco espaço. Mestra em Musicologia e especialista em Musicoterapia, esta artista cheia de música na alma toca piano e outros instrumentos. E também faz música com as palavras. Mas não qualquer música. Seus versos estão cheios de realidade, da dura realidade da vida da seca nordestina, com sua areia, seu sol inclemente e a lua gelada do deserto. De todos os desertos da Terra, e de todos os “desertos” que atravessamos na vida.

Mas também estão cheios de esperança, de sonho, de propósito de vida, e de céu de estrelas.

E claro, como não poderia deixar de ser, de poesia, nesta linda fábula onde os amigos que o rapaz encontra – o anu, o calango, o boi – vão aparecendo nos momentos mais difíceis.

Como o conto inteiro você já vai ler com certeza, vamos terminar com algo da poesia de “Lua de Couro”:

“… e de repente, o rapaz não se sentiu mais só… Se sentiu cheio de estrelas…

Então olhou pra lua…

Lua que anda pelo céu e se transforma…

E não é que a lua anda como o povo que procura como viver e se transforma como o povo que precisa sobreviver? Ela parece feita de couro.”

Esperamos mesmo que Niágara seja prolífica e nos brinde ainda com muitas obras musicais, suaves e fortes como ela, e te convidamos a ler “Lua de Couro”, e comentar aqui da sua experiência com os livros que vimos hoje.



Graciela Botella
Equipe de redação da PoloBlog

Fontes:

www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde…/2012_ValteirBeneditoVaz.pdf

https://www.culturagenial.com/vida-e-morte-severina-de-joao-cabral-de-melo-neto

Botella, G. Livros comentados para o vestibular UFPR 2000, Cursinho Profissional, 1999.