“É doce morrer no mar”. Essa frase, direta e indiretamente, aprece bastante no livro “Mar Morto”, de Jorge Amado, publicado quando o escritor baiano tinha apenas 24 anos. Apesar da pouca idade, ele surpreendeu com a construção deste verdadeiro épico, que, em essência, distancia-se de “Jubiabá” e “Capitães da Areia”, lançados mais ou menos no mesmo período, e cuja abordagem era mais política, direcionada a denúncias de cunho social.

Inclusive, quem é acostumado a uma leitura um pouco mais sarcástica, crítica e sensual de Amado, pode se surpreender com “Mar Morto”, onde o lirismo e a poesia são latentes. Guardadas as devidas proporções, podemos enquadrar esse livro de Amado na mesma categoria que “A Odisséia”, de Homero. Neste clássico da mitologia, Ulisses passa nada menos do que 10 anos navegando pelo Mar Egeu, enfrentando todo tipo de provações dadas pelos deuses, com o objetivo de voltar ao lar e aos braços de sua amada esposa Penélope.

Em “Mar Morto”, temos o “nosso Ulisses”, Guma, marinheiro valente e honrado, que, assim, como o herói criado por Homero, sabe que tem um destino a cumprir: trabalhar e morrer dentro do mar. “É doce morrer no mar”. As similaridades com a obra grega são muitas, já que o protagonista do livro de Amado também está à mercê da vontade dos deuses; neste caso, uma deusa: Iemanjá. E, não há como escapar: a rainha do mar cobra dos seus filhos que cumpram seu destino. Não importam rezas, súplicas, nem tão pouco oferendas; Iemanjá sempre consegue o seu objeto: encontrar seus filhos no fundo mar.

Por mais que simbolicamente Iemanjá tenha papel preponderante na trama, devido às crenças e costumes daquela comunidade de pescadores, a personagem feminina “real” mais importante do livro é Lívia, esposa de Guma, sempre apreensiva de que seu amado sofra alguma tragédia, e nunca mais volte ao lar. “É doce morrer no mar”. É o carma que aqueles seres, tão à margem da sociedade, precisam lidar. Diariamente. Constantemente. Dolorosamente. Só que, assim como Ulisses, todos ali já têm um destino traçado, que precisa ser cumprido. Um determinismo ainda mais enraizado devido ao sobrenatural.

Por sinal, a obra possui um tom sobrenatural (mais precisamente, espiritual) muito forte, com passagens um tanto sombrias, obscuras. É o caso, por exemplo, da aparição de um estranho senhor, dado como morto há muito tempo, acentuando ainda mais a crença daquelas pessoas no sobrenatural, no místico, no oculto. Por sinal, a “volta” deste desse senhor terá uma grande relevância para a história daqui pra frente.

Mesmo que a trama, em geral, gire em torno de Guma e Lívia, ela também abre um leque interessante de possibilidades para apresentar outros personagens igualmente importantes para a narrativa, como é o caso de Rufino e Esmeralda, ambos importantíssimos para termos um entendimento maior de Guma a partir da interação deles com o protagonista.

Ao ler “Mar Morto”, em várias ocasiões, não parece que estamos presenciando uma narrativa, e sim, uma poesia sendo declamada. Uma poesia sublime, triste e assustadora, é verdade. Mesmo assim, muito bonito. “É doce morrer no mar”. Engana-se, no entanto, quem pensa não há aqui alguns toques de realismo/naturalismo tão presentes nas obras mais famosas de Jorge Amado. Tanto é que em diversas passagens você se sente naquele ambiente da vila de pescadores, sentindo a brisa do mar, o cheiro dos peixes, as conversas das mulheres nas vielas, e tantas outras sensações. Uma experiência bastante sensorial.

Só que grandes histórias se fazem também com grandes personagens. E, “Mar Morto” tem muito isso. Mesmo o tom épico não torna a construção dos personagens algo raso e unidimensional. Guma, por exemplo, é o herói dessa narrativa, mas tem os seus defeitos e tentações. Já Lívia, que a princípio se mostra uma esposa abnegada, vai mostrando muita força, perseverança e altivez diante de uma provável tragédia que possa se abater na sua vida. “É doce morrer no mar”. São, em suma, personagens riquíssimos, muito bem elaborados, e cativantes. Não nos esqueçamos também de Rufino e Esmeralda, que são muito importantes para o desenrolar da trama. E, existem aqueles que podemos chamar de “coadjuvantes”, como a professora Dulce e o médico Rodrigo, sempre tentando conscientizar aquela população do cais, o que acaba inserindo a crítica social que é tão presente nas obras de Jorge Amado.

Claro, nada disso conseguiria o efeito desejado sem a genialidade do escritor. Uma escrita que, inclusive, envolve cada um de nós, a despeito de classes sociais ou níveis de leitura, assim como os encantos do mar envolvem aqueles pescadores. Como uma “Iemanjá da literatura”, Amado sabe ser sedutor com as palavras, encantando e fazendo refletir com uma história que, na realidade, ainda está muito perto de nós. Uma história de resistência e de crenças de quem, a despeito de dormir e acordar no mar, ainda continua à margem.

Sim, “é doce morrer no mar” quando a vida tem muito de amargor. É o doce possível nesta obra fascinante e obrigatória do grande mestre baiano.

Erick Henrique da Silva
Equipe de redação da PoloBlog

https://homoliteratus.com/a-importancia-de-jorge-amado-e-seu-mar-morto/
http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Web/x-sihl/media/comunicacao-60.pdf