Proponho abordar, neste breve texto, a temática do epistemicídio do pensamento e do conhecimento produzido por mulheres negras. Essa circunstância é fruto do racismo sistêmico presente em nossas estruturas sociais e históricas. Faço isso com o intuito de evidenciar o pensamento e a escrita desse conjunto de mulheres, que foram invisibilizadas e omitidas das cenas acadêmica, social, artística, cultural e religiosa. Consequentemente, essa invisibilidade resulta no desconhecimento e na marginalização dos saberes produzidos por elas, o que contribuiu para lançá-las à periferia social.
Desse modo, o epistemicídio é eficaz no que tange ao desconhecimento e apagamento dos saberes, ciências, lutas, artes, resistências, escritas, fazeres e conhecimentos, principalmente de mulheres negras. Esse é o ponto central sobre o qual o pensamento hegemônico e eurocêntrico se sustenta: no apagamento e na marginalização. A ativista e feminista negra Sueli Carneiro, em sua tese de doutorado, adota o conceito de epistemicídio dos estudos de Boaventura de Sousa Santos (2009), que identificou que, no processo de expansão europeia, além de provocar o genocídio das populações originárias, também causou um epistemicídio — a morte dos conhecimentos desses povos. Ela se apropria desse conceito para discutir o epistemicídio negro como fator que inviabilizou a visibilidade do pensamento negro no país.
Nas palavras de Carneiro (2023, p. 308), “[…] o epistemicídio permite analisar a construção do Outro como não ser do saber e do conhecimento”. Essa negação do Outro, ou seja, do negro como construtor de conhecimentos válidos, o posicionou na condição de incapaz. Esse é um dos motivos que justifica a ausência do pensamento de pessoas negras nas instituições sociais e religiosas na sociedade brasileira. Seguindo esta linha de pensamento, nos ocorre evocar alguns questionamentos apontados pela escritora, teórica e artista Grada Kilomba (2019, p. 50) em Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano:
“Qual conhecimento está sendo reconhecido como tal? E qual conhecimento não o é? Qual conhecimento tem feito parte das agendas acadêmicas? E qual conhecimento não?”.
São perguntas que ecoam em meu interior, enquanto mulher negra, ativista e intelectual, e convido cada pessoa racializada que lê este texto a pensar nas suas experiências particulares, mais especificamente no âmbito acadêmico. Ainda é nítido nas academias do país o enaltecimento dos conhecimentos gerados pelo norte global, desconsiderando autoras e autores negros que construíram conhecimento em nosso país.
O espaço acadêmico ainda segue sendo um espaço branco, de pessoas brancas, de privilégios desse grupo, que nega o acesso e a produção de pessoas negras. Tais pessoas, nesses espaços, têm sido objetos de estudos, investigação e análise, contribuindo para a ascensão acadêmica de brancos. Segundo dados do IBGE 2022, o país conta com 56% da população declarada preta ou parda; desses, 28% são mulheres negras. Entretanto, esse grupo ainda segue em desvantagem se comparado a pessoas brancas. Atenho a atenção ao âmbito acadêmico: de 7,7% para 14,7% de mulheres negras e de 20,1% para 29% de mulheres brancas. Considerando que somos a maioria no país, este número continua muito aquém do que poderia e deveria ser. As academias brasileiras seguem com a ausência de corpos e dos conhecimentos de mulheres negras, cis e trans.
As autoras Joselina da Silva e Maria Simone Euclides, ambas negras e doutoras, relataram suas experiências, desafios e conquistas como professoras na pós-graduação, no artigo intitulado “Autoetnografias dialogadas de feministas negras: experiências de docentes negras em programas de pós-graduação”. Desde uma perspectiva interseccional e feminista negra, evidenciam que a ocupação desses espaços por mulheres negras pode promover mudanças significativas nos currículos, a partir das suas teorias feministas, antirracistas, antissexistas, ao provocar temáticas contextualizadas (Silva; Euclides, 2022).
Na esteira do que sinalizam as autoras, mulheres negras em espaços acadêmicos provocam e desestabilizam a branquitude em seus privilégios e evocam outras epistemologias, que dialogam com a realidade concreta dos graduandos, mestrandos e doutorandos, ao apresentar escritos de pessoas negras desconhecidas do grande público, e que não aparecem nas referências bibliográficas dos cursos.
No que concerne à escrita de pessoas negras, principalmente de mulheres negras, vemos uma escrita em primeira pessoa, o que significa assumir a responsabilidade da própria escrita, nomear a experiência, tornando um ato político falar em nome próprio. Isso pode ser verificado na escrita de Grada Kilomba (2019), Conceição Evaristo (2017), Djaimilia Pereira de Almeida (2023), para citar algumas. Uma escrita em próprio nome, situada, que parte das experiências. Tudo isso coloca em xeque o que muitas de nós aprendemos ao adentrar na academia sobre a neutralidade acadêmica. A escrita e o pensamento dessas e de outras tantas mulheres começam a permear e a moldar os espaços acadêmicos brasileiros recentemente, e começam a ser tema de interesse. Digo isso devido ao epistemicídio do pensamento de inúmeras mulheres negras, gigantes na interpretação do Brasil.
A tese de Sueli Carneiro, à qual fizemos referência acima, foi publicada em 2023, intitulada Dispositivo de Racialidade. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. A publicação ocorre 20 anos após a sua defesa. Assim como este trabalho de Carneiro, a tese de Ilsidinha Baptista Nogueira, A cor do inconsciente, importante trabalho para os estudos sobre a dimensão racial no campo da psicanálise, defendido há mais de duas décadas, foi publicada somente em 2021. Maria Firmina dos Reis (1825–1917), uma ilustre desconhecida do grande público brasileiro por quase 100 anos. Considerada a primeira romancista da literatura brasileira e afro-brasileira, primeira a introduzir o gênero romance em língua portuguesa, foi folclorista, fez composições musicais. Carolina Maria de Jesus (1914–1977), escritora, compositora, catadora de papel, trabalhadora doméstica, mãe, solo. Escreveu diversos contos evocando a realidade vivida. Todas elas têm em comum o apagamento, o esquecimento de suas obras e pensamentos.
Nos últimos anos, obras de autoras afro-americanas como Patricia Hill Collins, Angela Davis, Audre Lorde e bell hooks, bem como de escritoras africanas como Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, Scholastique Mukasonga, Chimamanda Ngozi Adichie, Paulina Chiziane e Djaimilia Pereira de Almeida, têm ganhado espaço no mercado editorial brasileiro. Embora as duas últimas sejam de países lusófonos, foi apenas na última década que suas obras começaram a ser comercializadas por editoras brasileiras.
Vivemos um período em que a sabedoria e a experiência de mulheres negras estão ocupando espaços acadêmicos, culturais e sociais, recebendo o devido valor, respeito e reconhecimento, apesar do racismo que ainda permeia esses ambientes.
As experiências e lutas de inúmeras mulheres negras têm obtido reconhecimento intelectual e acadêmico, contribuindo para eliminar o epistemicídio que marcou as histórias e os saberes produzidos por essas mulheres. Aprender sobre o pensamento e a trajetória de mulheres negras é um convite para que cada mulher negra erga sua voz, passando de objeto a sujeito que fala por si mesma e em seu nome.
Referências bibliográficas:
- ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo: dois ensaios e uma conversa. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2023.
- CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
- EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
- hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Catia Bocaiúva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
- KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
- SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.
- SILVA, Joselina da; EUCLIDES, Maria Simone. “Autoetnografia feminista negra dialogada: referência de epistemologias possíveis”. Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 43, n. 2, p. 175–186, 2023. DOI: 10.5433/1679-0383.2022v43n2p175. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/seminasoc/article/view/48160. Acesso em: 23 nov. 2024.