Down, down, down

Alice não gostava dos livros sem imagens ou diálogos, se perguntava se fazia sentido apenas palavras e qual seria a sua utilidade. A menina foi salva do tédio por um coelho branco com colete e relógio de bolso — e aqui não importa muito dizer se ela estava dormindo ou acordada.

Ela o perseguiu, entrou numa toca de coelho enorme, que continuava como se fosse um túnel sem fim, até chegar ao ponto em que a queda era inevitável. De fato, ela nem teve tempo de pensar sobre o que lhe ocorrera, parecia estar em um poço sem fundo e nem conseguia imaginar quanto tempo aquilo duraria.

Como leitor, não se pode afirmar o que cada indivíduo busca quando se procura por um livro, mas, provavelmente, entre as possibilidades estará o prazer em descobrir mundos imaginários. Alice, uma criação de Lewis Carroll, nos agracia com a capacidade humana de criação, em que as palavras trazem imagens claras para o deleite de qualquer espectador, seja criança ou adulto.

Dar vida à imaginação, cair no sono, sonhar ou acordar, tudo isso faz parte do universo de Alice, o qual muitas vezes se encontrava de ponta-cabeça, alterando referências do nosso dia a dia e abrindo os olhos para um mundo que pode ser visto de uma outra perspectiva, mesmo quando em queda livre.

O pacto criado entre o escritor e o leitor — no estranhamento de encontrar um coelho branco com colete e óculos de bolso e naquela queda sem fim dentro da toca — é absoluto: ali o leitor entende que tudo é possível naquela história, que ali se entra nas graças da fantasia. Todavia essa abertura tamanha causa questionamentos à pobre Alice sobre a sua identidade: Quem sou eu nesse mundo onde coisas estranhas acontecem? Por que o coelho branco tem tanta pressa?

Talvez sejam perguntas retóricas que não tenham repostas, pois, de certo modo, abarcam a nossa realidade e seus aspectos intangíveis. Sendo assim, a história com intuito leve, dedicada a uma criança, também insere questões universais; é preciso perceber que de maneira alguma devemos menosprezar a potência de um clássico da literatura. A cada nova situação e diálogo proposto pelo autor durante o texto, podemos nos aproximar de uma situação análoga no nosso cotidiano.

A fotografia, que surgiu em 1826 com o Joseph Nicéphore Niépce, fez com que repensássemos a arte visual e sua importância de retratar a realidade como ela é, abrindo caminhos a novas formas de expressão, entre elas podemos destacar o modernismo e a arte abstrata. Talvez o mesmo caso possa ser explicado na necessidade de se criar outras formas de representação e outras formas de se experienciar a realidade na literatura — não colocaremos Alice como um livro precursor nesse sentido, há livros anteriores como Dom Quixote, mas como uma forma com grande potencial dentro da literatura, que leva em consideração outras maneiras de se experienciar o real — e, para uma criança, é importantíssimo pensar que a vida pode ser diferente e além.

Em outras palavras, não gostar de livros sem imagens ou diálogos, para Alice, seria como não suportar a imitação do mundo como é, posto que palavras que não levam a lugar algum não valem a pena serem lidas; aí está a sua queda no país das maravilhas: a possibilidade em se criar o novo por meio da experiência com as coisas ao seu redor, para que essa interação lhe gere algum valor.

 Trata-se de um livro voltado ao público infantil, mas despertar esse tipo de questões é bastante importante para o desenvolvimento humano, não à toa Antônio Cândido, que foi um importante estudioso de literatura brasileira e estrangeira, defendia a literatura como um direito universal. A queda livre de Alice talvez represente a nossa necessidade de confabular, de criarmos a nossa realidade e agirmos da melhor forma possível, sendo a Arte um presente à nossa sobrevivência.

Down, down, down, é a maneira como Lewis Carrol demonstrava a continuidade da queda livre no texto original, ainda narrando os objetos ao redor que iam surgindo durante o percurso, e mantendo um ritmo magistralmente poético. Alice, que em determinado momento já estava cansada de cair e não chegar a lugar algum, imaginava até mesmo estar indo ao centro da Terra; talvez fosse lembrança de uma fabulosa história do escritor francês, Júlio Verne, lançada em 1864, um ano antes de Alice ser publicada. Afinal, são também os livros alheios que nos ensinam como suportar humanamente as escolhas em nosso indeterminado percurso.