Todos precisamos da escrita. Se você pede para alguém escrever um pequeno texto, digamos do tamanho de uma folha de papel, essa pessoa vai dizer que gostaria, mas que tem outras coisas para fazer. Mas, hoje, a escrita se tornou um dos principais meios de comunicação nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens. Todo mundo tem que escrever textos todos os dias para se comunicar. É interessante que os avanços tecnológicos atuais dependam de uma técnica milenar que, na época, foi revolucionária.

E para explorar mais essa escrita, para ir além da simples troca de mensagens já a algum tempo comecei a praticar um simples exercício de escrita diária que faço logo ao despertar e pouco antes de dormir. Mas com o tempo extrapolou o exercício para uma momento de reflexão, hoje para mim é uma prática de autoconhecimento e refinamento do pensamento. Ao registrar ideias sem pressa e com plena atenção, minha mente se estrutura, permitindo uma consciência mais clara das próprias palavras.

Passei a questionar forma e conteúdo. Por isso que este exercício acabou se tornando uma terapia, e nesses atos de escrita programados, comecei a me distanciar da comunicação coloquial de nosso dia a dia, procurei usar outras palavras que aquelas que utilizamos para pedir ou para entregar uma resposta e entre a procura por novas expressões também, me veio à mente evitar o uso de certas palavras.

Entre todas as palavras que estruturam o pensamento humano, há uma que se ergue como barreira, um muro invisível na paisagem da comunicação: aquela que nega, bloqueia, desfaz. Para muitos, ela representa a primeira forma de resistência aprendida na infância, um escudo de autopreservação. No entanto, há quem a veja como um cárcere, um reflexo de um mundo que se define por suas ausências.

Eliminá-la foi mais que apenas um exercício de escrita, se tornou uma experiência cognitiva. O que acontece com o pensamento quando a negação se dissolve? O que resta quando a recusa perde essa palavra para se manifestar? Estou me referindo à eliminação do uso da palavra “não”.

A palavra “não” tem raízes profundas na história das línguas indo-europeias. Seu equivalente latino, non, já indicava uma negação absoluta, diferindo do ne grego, que podia expressar dúvida ou restrição. Ao longo dos séculos, sua estrutura foi se tornando cada vez mais categórica.

Curiosamente, alguns idiomas evitam uma partícula negativa tão rígida quanto a do português. No mandarim, por exemplo, a negação varia conforme o tempo verbal ou a situação, utilizando ou méi para indicar recusa ou inexistência. Já no latim clássico, o uso de non era acompanhado de nuances expressas por partículas adicionais, como nullus (nenhum), nihil (nada) ou nefas (proibido).

Por que, então, eliminá-la da escrita?

A psicologia cognitiva demonstra que a mente humana tem dificuldade em processar a negação de maneira direta. Quando se pede a alguém para “não” imaginar um elefante azul, a primeira coisa que a consciência projeta é exatamente esse animal surreal. O cérebro precisa conceber o conceito antes de anulá-lo.

Há implicações práticas nisso. Em comunicação, recomenda-se evitar construções negativas ao persuadir alguém. “Evite atrasos” soa mais efetivo do que “Não se atrase”. “Proteja-se” tem mais impacto do que “Não corra riscos”. A afirmação age como semente, enquanto a negação apenas poda.

A palavra “não” habita discursos políticos, sistemas dogmáticos e relações hierárquicas como um símbolo de controle. Muitas doutrinas a utilizam como elemento estruturante: “Não matarás”, “Não cobiçarás”. Regras fundamentadas no interdito.

O que ocorre quando essa negação desaparece?

Eliminar esse recurso exige criatividade, reformulação do pensamento. O discurso, ao perder a possibilidade de anular, expande-se para caminhos alternativos. Surge um fluxo que prioriza o que se pode, o que se deve, o que se deseja.

Exemplo prático:
— Frase comum: “Não quero errar.”
— Sem a palavra proibida: “Desejo acertar.”

— Frase comum: “Isso não faz sentido.”
— Reformulação: “A lógica aqui se perde.”

— Frase comum: “Não podemos recuar.”
— Reformulação: “Avançamos sem hesitação.”

Isso cria um ritmo diferente na escrita, um universo onde a afirmação prevalece, onde a construção ganha importância sobre a desconstrução.

Pessoas que internalizam a negativa tornam-se prisioneiras de um paradigma restritivo. “Não sou capaz”, “Não mereço”, “Não consigo” são sentenças que moldam identidades, estabelecem limites internos que ecoam em decisões diárias.

O contrário também é verdadeiro: há indivíduos que sustentam sua personalidade na oposição. Definem-se por aquilo que recusam, pelo que evitam, pelo que combatem. O perigo reside em um paradoxo: ao negar incessantemente algo, esse algo continua ocupando um espaço central na mente.

Se a negação se torna hábito, que tipo de realidade se constrói?

Ao nos aventurarmos pela linguagem sem essa sombra, descobrimos um território onde tudo se molda em afirmações. A mente passa a buscar caminhos afirmativos, a se expressar com mais precisão, a rejeitar ambiguidades.

Longe de significar submissão ou aceitação incondicional. O que se propõe aqui é um jogo, um desafio: por um dia, tente falar, escrever e pensar sem lançar mão desse pequeno e poderoso impeditivo. Veja o que acontece. Observe se o olhar muda, se os pensamentos transitam por lugares novos. No final, a linguagem estrutura o mundo. Já o mundo, por sua vez, retribui o olhar que lhe lançamos.