Naquela época da minha vida, eu morava com meus pais em Lima, no Peru. Embora fosse brasileiro, vivia nesse país desde os 5 anos porque meu pai, nascido no Peru, decidiu, em determinado momento, voltar à sua terra natal. Ele nos levou junto, a mim e à minha mãe, para viver em Lima.

Quando comecei a contar esta história, já havia terminado o segundo grau em uma grande escola pública de Lima, a GUE Melitón Carbajal. Lá, os alunos usavam uniforme militar, com boina e coturnos. Aquela rotina diária, que durante cinco anos consistia em ir de casa para a escola e da escola para casa, havia acabado. Depois disso, comecei um curso no centro da cidade para me preparar para o equivalente ao ENEM no Brasil, o exame de entrada na universidade.

Gostei imensamente da mudança de rotina. Podia andar pelas ruas do centro da cidade, escolher as roupas que gostava e explorar o mundo ao meu redor. Fiz novas amizades, conheci outros ambientes, e descobri um bilhar próximo ao curso, onde, levado por alguns colegas, comecei a jogar. Aprendi rápido e me tornei bom no jogo, mas havia outros jogadores tão habilidosos que poderiam ser campeões olímpicos, se houvesse uma modalidade assim.

Essas mudanças trouxeram uma sensação de liberdade. E aos 17, quase 18 anos, me declarei emancipado. Comecei a dizer “não” para os meus pais e, de repente, tive a nítida sensação de que podia fazer o que quisesse. Claro, ainda havia limites: eu não tinha dinheiro, não trabalhava, e dependia da mesada do meu pai. Mas até isso deixou de ser um obstáculo quando, em um momento de ímpeto, comuniquei a ele que queria viajar para conhecer Cuzco.

— Pai, quero viajar para Cuzco. — Falei isso durante um almoço de domingo, com a convicção de quem já havia tomado a decisão.

— Viajar? E com que dinheiro? — Ele respondeu, sem tirar os olhos do prato de comida.

— Não importa, vou de carona! — repliquei, firme.

Ele levantou os olhos , me olhou por alguns instantes e, com um suspiro, disse:

— Faça o que quiser, mas saiba que não é fácil.

— Eu sei. Mas preciso disso.

E assim começou minha aventura.

Convenci um colega a me acompanhar. Pegamos um ônibus urbano que nos levou para fora de Lima até uma estrada que subia os Andes. Lá, planejávamos pegar carona. Caminhamos o dia todo quilômetros sob o sol, cruzando extensos campos vazios e onde se via ao longe, de vez em quando, casas isoladas. A paisagem era deslumbrante, mas a jornada, foi exaustiva.

Ainda estávamos caminhando na estrada quando a noite caiu. Agora toda a estrada estava um breu, não havia iluminação pública. Estavamos como perdidos, aflitos sem saber onde estávamos e para onde essa estrada agora, na escura noite, nos levava. Num determinado momento, avistamos à distância um ponto luminoso na estrada. Não sabíamos o que era. Chegando mais perto percebemos que era um restaurante simples de estrada, com uma caminhonete estacionada na frente. Entramos, e lá estavam dois homens jantando. Com a ousadia que só a juventude permite e com o respeito dos sábios, perguntamos se estavam subindo os Andes e, ao confirmarem, pedimos carona.

De pé, suados, sujos e com os olhos arregalados contamos para eles nossas peripésias.

— Caminhamos o dia inteiro — expliquei, tentando parecer menos desesperado do que estava. — Será que podemos ir com vocês?

Eles nos olharam por alguns segundos. Um deles, de rosto marcado pelo sol, fez um gesto que sim e pediram que esperássemos eles terminar de jantar. Nos afastamos até encostar na parede e aí nessa posição ficamos, sem nos mexer, queitos e calados. Passado algum tempo notei que eles estavam cochichando e olhado para nós. Um parecia concordar e o outro discordar. E, logo em seguida o de cara marcada chamou o dono do restaurante e falou algo para ele que se afastou rapidamente como para cumprir uma tarefa mas voltou depois de um tempo e colocou dois pratos com comida em uma mesa próxima.

— Sentem-se nessa mesa. Comam algo. — Disse, o outro cara e logo percebemos que haviam pedido comida para nós. Quando sentamos vimos que era peixe frito com arroz e salada. Foi, sem dúvida, o peixe mais delicioso que já comi na minha vida até hoje.

Nos colocaram na caçamba, sentamos em cima de sacos, e ficamos apertados no meio de pacotes e caixas. A estrada era de terra, cheia de buracos. O carro pulava e balançava, o frio cortava, mas eu estava eufórico e feliz. Estavamos subíndo os Andes em meio à escuridão, e rodando na estrda sempre na borda de um precipício, cada vez mais alto, conforme subiamos as montanhas mais e mais. Para não cair nos agarravamos na carroceria da caçamba. Na escuridão, a única luz que se via eram os farois da caminhonete e o céu estrelado. Em um momento que o carro chacoalhou mais forte, levantei os olhos e vi o céu mais estrelado que alguém poderia imaginar. Nebulosas e constelações se estendiam como uma tapeçaria celestial. Era de tirar o fôlego. Nesse momento pensei comigo mesmo que tudo isso que estava passando valia a pena.

Os homens, vendo nosso desconforto com o frio e os buracos, pararam o carro e nos chamaram para entrar na cabine.

— Venham, antes que congelem aí atrás — disse um deles, abrindo a porta.

Na cabine, o ambiente era animado. Eles conversavam entre goles de pisco retirados de um enorme galão de vidro. A estrada parecia interminável, já dava para ver os cumes nevados das montanhas mas, em algum ponto da madrugada, adormecemos.

Acordamos ao som de vozes indígenas falando em Quecha que é o antigo idioma do Império Ínca e que é falado em todo os Andes. Tem outros idiomas mas este é o dominante. Havíamos chegado a Juliaca, uma cidade a mais de mais de 3.800 metros de altitude. O ar era frio e rarefeito, e a paisagem, deslumbrante. Ao nosso redor, homens e mulheres vestiam trajes tradicionais, chapéus e gorros coloridos de lã de lhama.

Os homens nos deixaram na estação de trem. Descobrimos que o próximo trem para Cuzco partiria só à noite, então fomos explorar a cidade. Juliaca era um contraste absoluto com Lima: predominantemente indígena, com mercados vibrantes e uma cultura profundamente enraizada. Tudo era novo e fascinante: roupas, chapéus e animais, como Lhamas e Cordeiros, transitandos entre a multidão passeando na rua.

Pegamos o trem de Juliaca e ao chegar em Cuzco, fomos imediatamente envolvidos pela energia única da cidade. Cuzco era o antigo coração do Império Inca, e isso se refletia em cada gigante pedra nas ruas, em cada sorriso dos alegres habitantes. Fizemos amizade com outros mochileiros e, no dia seguinte, partimos rumo a Machu Picchu.

A subida até a cidade perdida foi uma verdadeira prova de resistência. A trilha era íngreme, cruzando a estrada em ziguezague. O esforço era extenuante, mas a cada passo, sentíamos que estávamos mais próximos de algo extraordinário.

Quase no topo, me perdi. O cansaço e a ansiedade começaram a me dominar enquanto tentava acelerar a subida, na esperança de encontrar a trilha novamente. Mas meus passos me desviaram ainda mais, e logo estava sozinho, cercado apenas pelo mato fechado. O desespero cresceu a cada momento. Eu ouvia vozes ao longe, ecoando entre as montanhas, mas não conseguia avistar ninguém. Sem outra escolha, decidi seguir em frente, subindo pela encosta íngreme.

O terreno era traiçoeiro, e meus pés deslizavam em pedras soltas enquanto minhas mãos se agarravam a galhos e raízes como se fossem minha única salvação. Cada passo era um desafio, cada movimento exigia esforço. Quando finalmente cheguei ao topo, meus braços já tremiam, e as pernas queimavam de cansaço. À minha frente, uma parede vertical se ergueu como o último obstáculo entre mim e o destino que eu buscava.

Respirei fundo, reuni as forças que me restavam e comecei a escalá-la. Com os braços estendidos e as mãos firmes nas bordas da rocha, usei toda a força do meu corpo para me erguer. Coloquei uma perna sobre a borda e, com um último impulso dos braços, me levantei. Então, ao me pôr de pé, fui tomado por uma visão que parecia surreal.

Lá estava ela, Machu Picchu, majestosa e dourada sob a luz do sol. A grandiosidade daquela paisagem me atingiu como uma onda avassaladora, lavando toda a exaustão e o medo. Eu estavva sozinho, era como se o mundo tivesse parado, deixando apenas a beleza e a energia daquele momento. Não consegui conter as lágrimas. Chorei copiosamente, não de fraqueza, mas de uma emoção tão profunda que parecia vir das entranhas da minha alma. Eu havia vencido não apenas a montanha, mas também a mim mesmo.

Machu Picchu não era apenas um destino; era uma revelação. Sentado ali, olhando para aquelas ruínas milenares, compreendi que o mundo era vasto e cheio de possibilidades ou como disse o escritor peruano Ciro Alegria na sua obra prima: “El mundo está ancho y ajeno”. A liberdade que senti naquela viagem marcou minha vida para sempre. Não era apenas sobre conhecer novos lugares, mas sobre descobrir quem eu era e o que eu poderia ser.

Essa aventura, gravada em minha memória, me ensinou que o verdadeiro tesouro da juventude está em ousar, em buscar o desconhecido, em se perder para se encontrar. E, acima de tudo, em nunca parar de sonhar.

Tinha 17 anos na época. Agora, enquanto escrevo esta crônica, tenho uma idade parecida, 71 – a diferença é que os números se inverteram –, mas, se contemplasse de frente novamente aquela imagem de Machu-Picchu, tenho certeza de que choraria de novo.

Estas duas fotos contam uma história especial. À esquerda, vemos a foto original de Ivo, tirada aos 17 anos, na icônica Praça de Armas de Cuzco, um lugar mágico onde viajantes do mundo todo se encontram e interagem. A foto foi registrada a pedido da jovem ao seu lado, que ele conheceu naquele momento e nunca mais viu. À direita, temos a recriação dessa memória, agora com sua esposa, Fátima, em uma viagem recente do casal a Cuzco, homenageando a lembrança única de sua juventude.