Sou cadeirante, pois fui atropelada ainda bebê, aos 10 meses de vida, enquanto meus pais trabalhavam.
Não dá para saber se teria ficado cadeirante se o carro tivesse passado apenas 1 vez em cima de mim e do andador. Ele passou duas: deu uma ré e depois foi para frente. O andador que usava também ficou estraçalhado.
Diferentemente do que tendem a pensar, o bebê se recupera bem em outras coisas, assim como meu braço separado foi reimplantado com sucesso e o traumatismo craniano com lesão cerebelar não me impediu de me pós-graduar e escrever, já medula do bebê não tem nova chance: uma vez estirada a medula elástica do bebê sua lesão se torna irreversível… É, acho que uma única vez já é o suficiente para um carro esticar a medula de um bebê, dependendo das condições.
Assim fui um bebê com lesão medular no final dos anos 80, quando não se tinha cadeirinha de rodas para bebês e crianças pequenas. Nessa época, também bebês e crianças ficavam sozinhos na UTI e nas ocasiões de algumas internações hospitalares.
Fisicamente estava presa, passando meus 5 primeiros anos de vida em uma espécie de carrinho de bebê, sem correr em volta das mesas de aniversário e sendo empurrada no carrinho de bebê sempre para onde o adulto me guiava, bem na fase crucial do desenvolvimento humano: a primeira infância. Era feliz, crianças acabam não filosofando sobre o assunto, simplesmente vivem. Bem, de alguma forma eu precisava viajar, soltar por uns instantes de todas as mãos que me carregavam, poder correr: se não fisicamente, pela imaginação.
Eu particularmente aprendi a escrever só aos 6 anos, no primeiro ano do Ensino Fundamental porém, quanto mais novos, mais facilidade temos de imaginar então, antes de aprender escrever, eu viajava na minha mente, mas não podia eternizar meus sonhos traduzindo-os em escrita.
A imaginação era minha grande aliada durante uma época em que não se via a importância do brincar e não tinha brinquedos nem brinquedoteca durante minhas internações.
Sorte que, quando somos pequenos, temos menos limitações, e até uma embalagem de chocolate ou nossas próprias mãos viram brinquedos!
Descobri o gosto pela escrita após a primeira infância, aos 8 anos, quando a professora pediu para escrevermos uma história. Além disso, o incentivo nos ajuda muito e uma das contribuições para que eu escrevesse foi o fato de as professoras fazerem elogios ao que eu escrevia.
Com elogios de outras crianças da família à história escrita aos 8, empolguei-me e já gostava de ganhar cadernos em branco para escrever. A partir daí, passei a ter a necessidade de materializar as histórias em papéis, não as deixando mais abstratas, “voando” apenas em minha cabeça. O papel e os aplicativos para escrita são minha janela para poder contar minhas histórias, nessa hora, liberdade total. Considero escrever uma terapia.
Aos 10 anos de idade, escrevi uma história como presente de aniversário de 1 ano de um bebê, mas jogaram o livrinho fora, todo escrito em pedaços de folha de caderno e desenhos feitos com lápis de cor. Essa foi uma das minhas histórias perdidas para sempre mas isso não me desanimou e continuei escrevendo, apesar da frustração.
Aos 11 anos, ganhei meu primeiro computador, doado socialmente por uma empresa, mas continuava escrevendo em papel, pois as histórias eram minhas companheiras em aulas vagas e, às vezes, enquanto esperava minha mãe ir me buscar na escola: os demais jovens já voltavam sozinhos para casa, mas, cadeirante e com cadeira manual, precisava da minha mãe para empurrar minha cadeira nas ruas com muitos aclives. Hoje em dia, já prefiro digitar a escrever a mão.
Após a infância, mais especificamente a partir dos 13 anos, desanimei-me de escrever histórias e gastava muito tempo pesquisando cura para a lesão medular, estudando e escrevendo para médicos ao redor do mundo, não sei exatamente o que aconteceu, porém devo ter focado demais em uma única coisa e deixado o que dá prazer de lado, sem relaxar. Somente há 3 anos, quando minha sobrinha nasceu, vi um motivo a mais para escrever e minha primeira publicação foi um presente para ela.
Sempre gostei de escrever histórias infantis e minha sobrinha é minha “musinha inspiradora”: é muito bom ela pedir uma história de qualquer tema e eu poder escrever para ela. Um motivo a mais de nossa forte conexão! É muito engraçado lembrar da minha sobrinha com 1 ano de idade sentada em frente ao computador (desligado) teclando e respondendo que estava escrevendo livrinhos! Também é divertido me relacionar com ela cantando o que quero dizer (as vezes faço isso com minha mãe também) e minha sobrinha já faz isso também! Criamos musiquinhas para tudo!
Ainda mais quando se escreve histórias infantis, é bom ter uma criança pequena por perto: brincar com elas é a continuação da brincadeira que fazemos no papel e nos ajuda a desestressar e tirar de nossa cabeça alguns bloqueios que passamos a desenvolver quando crescemos.
Não existe imaginação com deficiência, não existe história inventada com limite: nossa imaginação vai além do universo pois podemos criar qualquer mundo que imaginarmos.
Nani Paiva, 01/09/20