Rogério Piva em Papua-Nova Guiné

Nossa história de hoje tem início aqui em São Paulo, a maior cidade do Brasil e uma das maiores do mundo. Nesse contexto de país de terceiro mundo, com um povo muito alegre e que passa por dificuldades inimagináveis todos os dias, nasceu Rogério Piva, nosso entrevistado desta semana! Rogério é um artista circense paulistano com muito amor no coração e que participa de diversos projetos e engajamento com as pessoas mais carentes do Brasil. Graças à sua performance excepcional, este grande artista levou ao mundo um pouco da cultura de seu país.

Algumas vezes pode parecer fora de contexto apresentarmos profissionais de outras áreas aqui, mas é importante ressaltar que toda arte é literatura! Graças à literatura, pudemos conhecer grandes nomes que nada tinham a ver com os livros. Esse projeto da Polo visa imortalizar essas pessoas que criam arte e engajamento com o público todos os dias, escritores ou não. Esperamos que com isso as pessoas possam ter mais esperança em meio à Pandemia e acreditar em seu trabalho, sabendo que tudo o que fortalece o outro é grandioso!

Voltando ao nosso entrevistado, Rogério buscou seu caminho ainda cedo, aos seis anos, na periferia de São Paulo, Vila Guacuri. Para quem é paulista, não é incomum ver projetos de engajamento com jovens das periferias, que visam oferecer uma nova realidade e novas habilidades em meio à violência e exclusão dessas pessoas. Esse projeto fez com que Rogério pudesse ver um novo caminho, harmonioso, consciente e mais promissor.

Foi com o malabarismo que Rogério engajou em um novo projeto, dessa vez em Diadema. Ele deixou seu trabalho em uma feira em um bairro de classe alta de São Paulo para se dedicar às oficinas de circo e desenvolver suas habilidades fazendo malabarismo nos semáforos de São Paulo. Foi nesse projeto que ele conheceu um professor que fez questão de citar por sua dedicação, chamado Marcio Costa.

Com a melhora de suas habilidades e o treino diário, Rogério começou a fazer animações com pernas de pau, como palhaço e sempre praticando seus malabares. Aos 17 anos, já trabalhava em seu primeiro circo. Rogério nos contou que pensou em trocar de carreira durante esse período, chegando até a começar a faculdade, mas ele descobriu no circo sua verdadeira vocação! Com esse trabalho, Rogério pode viajar para 37 países até agora, ganhando prêmios e até mesmo se apresentando para o Papa Francisco, no Vaticano!

Com essa introdução, vou deixar vocês com as palavras de Rogério nessa entrevista inspiradora. Espero que gostem!

Eu me divertia e comia um bom lanche. Participava do teatro, artes plásticas, dança, capoeira, circo, entre outras oficinas.  Apenas aos 14 anos me descobri no malabarismo e não deixei mais.

Sempre atuei pelas favelas em São Paulo e sempre busquei orfanatos e escolas. Comecei a empreender viagens longas e contínuas para chegar cada vez mais longe. Isso me fez passar nove meses na África, quatro meses na Ásia, na Papua Nova-Guiné e agora viajo por comunidades rurais do Nordeste brasileiro.

  1. O que você faz pelo Brasil é muito inspirador! Como isso começou?

Começou desde cedo, com a ânsia de viajar como os saltimbancos que eu lia nas histórias. Assim que comecei a praticar malabares, já me via viajando. Isso se concretizou de fato quando comecei a me questionar sobre o poder transformador de harmonização da arte e de como a utilizar como uma ferramenta de educação. Ao lembrar do meu contexto na periferia e perceber como a falta de acesso à cultura, esporte, etc. causa um impacto muito forte e negativo. A desigualdade, a falta de uma educação estruturada, a exclusão, tudo isso leva a um ciclo de violência muito grande e aumenta ainda mais a desigualdade.

Foi me vendo participando nos grandes espetáculos de circo no mundo que notei que, para entrar e me assistir, existia uma fronteira, que é a bilheteria. Ali há a separação de quem pode pagar e de quem não pode.  Eu também lembrava que eu, na minha comunidade, jamais poderia ter acesso a um show assim por ser caro. Portanto, esse questionamento me levou a me dedicar cada vez mais a visitar comunidades carentes e desprovidas do acesso a esse tipo de cultura. Sempre atuei pelas favelas em São Paulo e sempre busquei orfanatos e escolas. Comecei a empreender viagens longas e contínuas para chegar cada vez mais longe. Isso me fez passar nove meses na África, quatro meses na Ásia, na Papua Nova-Guiné e agora viajo por comunidades rurais do Nordeste brasileiro com meu fusquinha, levando um espetáculo de muita qualidade com tudo o que tenho de habilidade. As pessoas ficam maravilhadas quando veem meu portfólio e me perguntam o que eu faço ali. Elas adoram o show por nunca imaginar presenciar algo com tanta técnica, que sempre está limitado aos grandes circos e palcos do mundo.

   “Chegar a uma nova comunidade é sempre uma alegria.  Aqui com o meu fuscão, no interior do Rio Grande do Norte, e preparando meu show para o pessoal do Quilombo de Macambira.”

  1. Como é a rotina de um profissional circense?

Isso é relativo, cada um faz sua rotina, não há uma regra. Cada artista faz seu tempo. Muito depende das condições em que vive cada um. Há artistas de circos pequenos que levam uma rotina mais difícil, pois precisam trabalhar em muitas coisas para manter o circo e mal sobra tempo para ensaios. Há os artistas de circos maiores, que podem se dedicar somente aos seus números. Há artistas das ruas que conciliam os ensaios com o trabalho nos semáforos ou praças. Há os artistas que trabalham com shows em teatros, navios. Muitos têm tempo para ensaiar e bons espaços que dão maior condição de desenvolver-se. Então, não há uma rotina específica, pois as condições não são iguais.

 

3. Você deve ter conhecido muitas pessoas inspiradoras fazendo isso. Houve alguma que te marcou como pessoa ou profissional?

Conheci um monte delas e todas elas mereciam ser citadas aqui. Pessoas que são grandes artistas e me inspiram pela habilidade e disciplina. Outras que são bons teóricos. Muitos que são ativistas, professores. Levo um pouco de cada. Mas posso dizer de uma pessoa que me inspirou a tomar a decisão de viajar pela África foi o Minero Palhaço Missionário. Somos amigos e nos conhecemos em convenções de malabarismo. Ele fez uma viagem para Burkina Faso, em 2014, e lá está até agora. Fez uma escola, ensina crianças e faz espetáculos em comunidades. Nessa missão dele, a gente conversava muito e eu fui um apoiador fiel. Isso me motivou muito a me esforçar mais para não ser somente um artista comercial. Queria sentir isso com a minha arte, queria que fosse mais intenso e decidi vivenciar com mais profundidade, tanto que passou a ser algo necessário na minha vida como artista e também uma prioridade. Todas as minhas viagens são de forma autônoma e independente. Não conto com nenhum tipo de financiamento, apenas com o que recebo do povo no meu chapéu que é a bilheteria democrática onde todos podem colaborar. Colaboram com o quanto puderem, se puderem, com o quanto quiserem e se quiserem. A partir disso, é possível implantar a cultura do chapéu, onde o público entende a importância de reconhecer o artista para que ele chegue também a outras comunidades, pois uma comunidade anterior colaborou para que ele chegasse até a que ele está agora.

4. O que você mais gosta de fazer?

Acredito que viajar, me perder, me jogar para qualquer lado é o que me oferece as melhores sensações da minha existência.

Leiam menos autoajuda, publiquem menos vitórias, menos felicidade. Acho que estamos em uma realidade onde tudo é muito positivo, por isso tanta depressão, pois já não sabemos mais lidar com o negativo. É preciso se atentar a realidade como ela é e buscar possibilidades de melhorá-la.

 

5. Se você pudesse deixar uma mensagem ao mundo, qual seria?

Não importa o caminho, ele vem com dores, com fracassos e vitórias, com risos e lágrimas. Não há como correr disso. É preciso praticar a amabilidade que envolve empatia, respeito e confiança. Entender que não há soluções mágicas. O pensar positivo, acreditar não é o caminho que nos leva a transformação de fato. Precisamos nos questionar constantemente a uma realidade de coisas que são impossíveis, outras muito difíceis e buscar a compreensão através do estudo, da reflexão, da contemplação das coisas e, assim, o entendimento de que precisamos ter ações conscientes de enfrentamento de uma realidade perversa, de privilégios, de simulações, de enganos e cheia de problemas que oprimem e matam seres de todo o mundo.

Não é um mundo mágico, é uma sociedade violenta e assassina, depressiva e fracassada. Estamos entre os heróis e vilões desse contexto. Por isso, muito estudo e reflexão para sermos cada vez menos vilões.

6. Pode nos falar um pouco mais sobre seu livro?

Foi um ano de muita pesquisa e aprendizado para escrever, editar e diagramar. Feito pela minha própria editora (risos), Pivete. Fiz o livro todo de forma independente, pois queria que fosse como nas minhas viagens, nas minhas ações.

É um livro repleto de fotografias lindas e de um relato sobre o poder transformador da arte livre, democrática e independente. Uma viagem incrível na Papua Nova-Guiné que é relatada neste livro onde a arte me conduz a conhecer lugares fascinantes, repleto de pessoas que têm o seu primeiro contato com a arte do circo. Esse não é um guia para viajantes, é um livro para questionar sobre a desigualdade de acesso à educação, arte e esporte. É um manifesto para que a arte seja mais acessível porque ela pode ser responsável por harmonizar as diferenças e unificar aqueles que se conflitam. Nas 164 páginas deste livro, repleto de fotografias, o leitor terá a oportunidade de me acompanhar nos dias que causaram uma infinidade de emoções e que me levaram às lágrimas por tamanha felicidade por me sentir onde eu deveria estar, no exato lugar e momento, assim como o alinhamento perfeito dos planetas. É vir de carona e abrir o coração para conhecer um pouco da Papua-Nova Guiné e o que a arte tem o poder de fazer. Para quem tiver interesse e gostar da ideia de apoiar estas ações, podem ver o livro na livraria da Polo. https://www.livrariapolobooks.com.br/diario-de-um-malabarista-papua-nova-guine

7. Quando você percebeu sua vocação? O momento em que disse “é isso que eu quero fazer”?

Bem, houve muitos momentos, muitas decisões. Percebi minha vocação como malabarista participando das oficinas de circo em um projeto social, também junto com alguns amigos no quintal de casa jogando limões para o alto. Percebi minha vocação de querer não ser somente um artista comercial ao participar de um movimento de ocupação (Ocupa Sampa) onde discutíamos sobre democracia e protestávamos contra o governo. Isso me fez entender o meu papel como artista. Também, o movimento da arte de rua me encorajava, pois tem muito propósito e está em um contexto de muita resistência e enfrentamento em uma sociedade preconceituosa.

8. Como tem sido suas apresentações e seu relacionamento com o público em meio a COVID-19?

 Tenho estado apenas em comunidades rurais, onde o vírus quase não é presente. Tudo está bem limitado e não tenho feito apresentações constantes. Visito assentamentos de poucas famílias e imponho as medidas, mas não posso dizer que sempre se respeita. São lugares muito isolados nos quais eu permaneço por um tempo.

Eu também trabalhei em um circo em Natal por um tempo onde estava perigoso fazer os shows nas comunidade. O circo tinha autorização e respeitava todos os protocolos.

De toda forma, meu campo de atuação é em comunidade bem afastadas. Fico um tempo isolado e depois visito as comunidades ao redor com todos os cuidados. Mesmo assim, é um risco que corro e ao qual também exponho outras pessoas. Nesse momento, estou há mais de três meses em uma pequena cidade de 2 mil habitantes. Não fiz show na cidadezinha, mesmo não tendo casos, mas fiz nas comunidades afastadas, que são bem isoladas e tem a certeza de não ter casos e também de não chegar ninguém de fora para o show.

9. Pode nos mandar uma foto de um dia inesquecível e nos contar sobre ele?

Essa foto é o conto de um dos meus romances em literatura de cordel chamado “O Portão”. Eu havia feito um show em um orfanato em uma pequena ilha pertencente a União de Comores, na África, a Ilha Mohéli. No fim do show, todas as crianças me acompanharam até o portão e dali não podiam passar. Pararam e os portões se fecharam. Eu fora e elas dentro, sem seus pais, que, de alguma forma, as deixaram sozinhas no mundo. Ao caminhar, uma das crianças subiu no portão e gritou: “até amanhã, senhor palhaço!”. Eu não pude olhar pra trás, pois não quis mostrar que um palhaço também chora, pois eu chorava muito naquele momento. Foi a primeira vez que aquelas crianças souberam sobre a existência da figura do palhaço.

10. O que você deseja para o Brasil depois dessa pandemia?

Tenho muito medo do que está por vir, por toda a polarização a que estamos nos submetendo. Essa pandemia mostrou que ainda precisamos desenvolver muita empatia, mais escuta, mais compreensão. Acho que é notável como a solidariedade se elevou, como passamos a nos ajudar mais, porém, isso precisa ser algo cultural e ainda vejo um país com uma população violenta, egoísta, oportunista, que está baseada em todo um contexto histórico de injustiças. Temos um longo caminho pela frente e acredito na educação como a principal fonte de mudança. Quando visito tantas comunidades e ainda vejo quase a totalidade das crianças que aos 12 anos ainda não sabem ler, sinto um desespero muito grande. Tenho presenciado isso com frequência. Não vejo outra forma de mudança se não pelo acesso à educação, arte e esporte de qualidade e mais igualdade de oportunidades.

11. Como podemos ajudar a espalhar sua mensagem?

Minha mensagem é a mensagem de muitos que se dedicam para que esse mundo tenha mais inclusão, menos preconceito e mais justiça social. Para me ajudar a espalhar essa mensagem, basta que a pessoa repense sobre seus conceitos e, se achar relevante algo do que falei, passe a praticar e multiplicar.

12. Qual foi o momento mais desafiador da sua carreira?

Quando decidi largar a ilusão de emprego com carteira assinada, com aposentadoria. A ilusão de que a faculdade seria o único caminho e, assim, confiei na minha arte como meio de vida. Como cito em duas estrofes do meu cordel:

Quando entrei na faculdade,
Veja bem a minha loucura,
Só por medo de viver
Propriamente da cultura.
Minha arte eu abandonei,
Minha verdade eu reneguei
Vivendo na amargura.

Eles haviam conseguido,
Me fizeram acreditar,
Êxito e prosperidade
Não se podia ganhar.
Que é profissão inútil,
É só um trabalho fútil
Ser artista popular.

13. Pode nos deixar uma citação inspiradora?

Deixarei as estrofes finais de um dos meus romances em literatura de cordel, chamado “O crime de um artista de rua”.

Arte é a liberdade
Que nos custa conquistar.
É através da razão,
Do ato de questionar.
Assim vou me libertando
E me despadronizando
Para enfim poder voar.

Algum dia nós veremos
Os teatros ocupados,
Circos e as livrarias,
Todos sempre bem lotados,
Fazendo o povo pensar
Para mais se questionar,
Serem mais humanizados.

Quero a minha arte livre
Pra mensagem eu passar.
E esta podre sociedade,
De frente vou confrontar.
Não permitirei grilhões,
Nem correntes e ilusões,
Deste mundo me frear.