José Saramago e o Ensaio sobre a cegueira
Em 1922, nascia um dos mais influentes autores contemporâneos: o português José de Sousa Saramago. Vindo de uma família de agricultores, passou boa parte da vida em Lisboa e desde a infância já demonstrava grande interesse cultural e literário, o que marcou profundamente suas obras. Saramago é um dos poucos autores europeus influentes dessa época que não vinha de família abastada, o que fez com que seu percurso acadêmico fosse muito dificultado. Devido às suas condições, não pôde cursar a faculdade cedo e seu maior professor foi a Biblioteca Municipal Central.
Aos 25 anos, o autor publica seu primeiro romance: Terra do Pecado. Nesse livro, a protagonista, Maria Leonor, perde o marido ainda nas primeiras páginas. Ela tem dois filhos pequenos e a responsabilidade de administrar a propriedade do falecido marido. As páginas a seguir tratam dos pesares dessa nova viúva em se tornar uma mulher madura para administrar suas posses e lidar com os olhares da sociedade da época, que não viam mulheres desacompanhadas com bons olhos.
“Foi o Doutor Viegas que me salvou, dirão os céticos; foi Deus que, por intermédio dele, não quis que eu morresse já, dirão os crentes; ainda não era a minha hora, dirão os fatalistas. Todos temos razão, afinal, eu fui salva quando me perdia.”
Saramago rejeitou sua primeira obra por muito tempo, devido à falta de maturidade de sua escrita na idade que tinha então. Com uma obra publicada tão jovem e diversos trabalhos editoriais e traduções, era de se esperar que esse promissor autor seria o ganhador do prêmio Camões, o mais importante prêmio da literatura portuguesa, em 1995 e do Nobel da literatura, em 1998.
“A vida é assim, está cheia de palavras que não valem a pena, ou que valeram e já não valem, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito.”
A carreira de Saramago foi seguida por diversas polêmicas devido a seus posicionamentos sociais impopulares. Um deles era o de que a Igreja Católica é uma instituição fascista e de que a Bíblia é um manual de maus costumes (sem deixar de considerar um grande adendo à literatura). Diversos protestantes apoiam sua liberdade de expressão, mas os católicos não podem dar esse mesmo apoio, já que o autor chegou até mesmo a dizer que os católicos apenas o são porque não leem a Bíblia.
“Eu acredito no respeito pelas crenças de todas as pessoas, mas gostaria que as crenças de todas as pessoas fossem capazes de respeitar as crenças de todas as pessoas.”
É impossível falar desse autor tão aclamado sem falar de sua obra-prima, livro que se tornou filme e fez uma análise profunda dos vícios da sociedade e de como lidamos com as tarefas e o automatismo do dia a dia. Em Ensaio sobre a cegueira, uma epidemia de cegueira se espalha por uma cidade, trazendo o caos ao deixar todos sem visão. Como confirmado pelo próprio autor, o livro é terrível e tem o intuito de trazer sofrimento ao leitor. Em suas palavras:
“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
O primeiro cego vai a um oftalmologista a fim de desvendar sua cegueira repentina. Além de não consegui-lo, ainda acaba passando a cegueira para o médico. Assim, todos na cidade acabam sendo infectados, menos a mulher do médico, a heroína do livro, que é instruída a cuidar de todos os outros. As pessoas se juntam e tentam manter a organização a fim de evitar o caos, mas quando se reúnem no hospício, o pior de cada um parece vir à tona. Talvez seja o medo, que traz instintos primitivos, ou talvez seja a própria índole de quem não precisa mais se conter, mas desde manipulações até estupros e mortes, as pessoas se perdem cada dia mais. Quando um pequeno grupo escapa com a mulher do médico, a cena que ela descreve na cidade parece o inferno na Terra e a busca pela sobrevivência básica se inicia.
“Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão.”
Nessa obra, Saramago faz uma profunda análise de nosso comportamento em sociedade. A formação básica da sociedade se deu para facilitar a vida de todos. Afinal, cada um é bom em algo, certo? Isso nos completa e nos faz únicos, então podemos nos ajudar e viver dignamente e felizes assim. Porém, quando o conhecimento de alguns passa a ser desvalorizado em comparação ao de outrem, faz-se o caos. Não há mais espaço para que a pessoa contribua para a sociedade porque outro pode fazê-lo através de máquinas que substituem humanos. Assim, a pessoa começa a ser um estorvo para a sociedade e seu valor não mais existe. Essa noção básica é o que nos falta quando olhamos apenas para nossos objetivos, nosso egoísmo, e nos esquecemos de quem está ao nosso lado. É o que acontece quando valorizamos mais um tipo específico de pessoa e nos esquecemos daqueles que foram nossa base. É o que nos acontece na cegueira do dia a dia, quando todos começam a ser invisíveis e apenas nós e nossos objetivos importam.
“– Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego.
– Acredito, mas não preciso, cego já estou.
– Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses.
– Sei, sei, levei a minha vida a olhar dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e eles se perderam.”
Assim como outros livros criados para nos fazer refletir sobre a sociedade e os seres humanos, como Admirável mundo novo e O senhor das moscas, “Ensaio sobre a cegueira” é uma obra poderosa sobre como a humanidade não é. Veja bem, ela não fala sobre o que poderíamos ser, mas sobre o que somos, todos os dias ignorando a sujeira de nossa vida em sociedade.
Espero que essa obra toque-os assim como me tocou, e que possamos voltar a enxergar logo!