A história de Pinóquio nos oferece uma oportunidade não apenas de analisar o desenvolvimento do ego, mas também de refletir sobre a dinâmica entre cuidadores e suas expectativas em relação aos filhos. Muitas vezes, os cuidadores, como Gepetto, não conseguem desenvolver a vida que gostariam antes de terem filhos. Quando finalmente têm um filho, deslocam suas próprias aspirações e demandas para essa nova vida, utilizando um mecanismo de defesa para lidar com suas frustrações. Nesse processo, as crianças podem ser sobrecarregadas com expectativas irreais e, quando não conseguem corresponder, tornam-se “um problema” para os pais, o que, paradoxalmente, dá sentido à vida do cuidador.
No caso de Gepetto, vemos um homem que parece solitário e frustrado por não ter uma família. Ele cria Pinóquio como uma externalização de seu desejo, mas essa criação vai além de um simples boneco de madeira. Gepetto projeta em Pinóquio suas próprias aspirações e, inconscientemente, espera que o boneco-que-virá-a-ser-menino preencha o vazio em sua vida. Esse deslocamento de suas próprias demandas para Pinóquio reflete uma tentativa de dar sentido à sua existência.
A questão que emerge aqui é: até que ponto os cuidadores, como Gepetto, atribuem aos filhos as expectativas que não conseguiram realizar em suas próprias vidas? Quando o filho não corresponde a essas demandas, ele passa a ser visto como “dando trabalho”, e é nesse “trabalho” que o cuidador encontra sentido. A vida de Gepetto, até então sem direção, passa a ter um propósito, ainda que esse propósito seja gerado pelo esforço constante de tentar guiar, corrigir e controlar Pinóquio.
Freud nos ensina que, muitas vezes, deslocamos nossos desejos reprimidos ou não realizados para outras áreas da vida. No caso de muitos pais e cuidadores, isso acontece em relação aos filhos. As demandas do inconsciente, não resolvidas, são projetadas sobre os filhos como uma tentativa de realizar aquilo que não se conseguiu em vida. Pinóquio, como representação do ego em desenvolvimento, enfrenta as exigências não só do mundo externo, mas também das expectativas internas que Gepetto lhe impõe.
Em várias passagens da história, podemos ver como Gepetto, sem consciência disso, cria um ciclo em que a busca de sentido passa por “corrigir” ou “guiar” Pinóquio. O comportamento desobediente de Pinóquio, por sua vez, provoca a necessidade de Gepetto intervir constantemente, tornando o papel de cuidador não apenas um dever, mas a fonte de seu propósito. Esse ciclo cria uma dinâmica em que, para que a vida de Gepetto faça sentido, é necessário que Pinóquio continue “dando trabalho”.
O Grilo Falante, ao representar a consciência moral em desenvolvimento, tenta guiar Pinóquio, mas sua voz é muitas vezes ignorada. Aqui, podemos ver como o papel de cuidador, quando sobrecarregado por expectativas não realizadas, pode falhar em fornecer um guia claro para o desenvolvimento da criança. Pinóquio, como muitas crianças, luta para entender as expectativas colocadas sobre ele, enquanto o Grilo Falante representa uma consciência que, ainda em formação, falha em se impor completamente.
A história de Pinóquio revela uma verdade desconcertante sobre a psicologia dos cuidadores. Muitas vezes, quando a vida parece não ter sentido, projetamos nossas expectativas sobre os filhos, e quando eles falham em atender essas demandas, criamos “trabalho” para nós mesmos como forma de preencher esse vazio existencial. O caso de Gepetto nos mostra que, na ausência de sentido, tendemos a buscar propósito através do trabalho de cuidar e corrigir, transformando os filhos em agentes desse processo.
Convido os leitores a refletirem: até que ponto suas expectativas não realizadas influenciam suas relações com os filhos ou com aqueles a quem cuidam? Estamos, como Gepetto, criando “trabalho” para nós mesmos na tentativa de dar sentido à nossa vida? Quais são as consequências dessa dinâmica para o desenvolvimento psicológico das crianças?