Naquela manhã, ele acordou mais cedo que de costume. A casa ainda dormia, e o mundo parecia suspenso num fio invisível entre a noite que partia e o dia que hesitava em chegar.

Fez café sem pressa, ouviu o som da água fervendo como se fosse uma sinfonia. Sentou-se à mesa com a xícara quente entre as mãos e percebeu, pela primeira vez em muito tempo, que não havia nada a esperar. Nenhuma obrigação, nenhum encontro, nenhuma cobrança. Só ele, o aroma do café e a luz cinza que entrava pela janela.

Nos últimos anos, tentara preencher cada fresta do tempo com algo: pessoas, tarefas, ruídos. Tinha medo do que o silêncio poderia lhe contar. Mas agora, ali, sentia que aquele vazio não o ameaçava mais. Pelo contrário, parecia chamá-lo com ternura.

Decidiu sair. Calçou os sapatos gastos, pegou o caderno amarelado e desceu a rua sem rumo. O bairro ainda despertava. Crianças bocejavam nas janelas, um rádio antigo tocava modinhas no quintal de alguém, e um cachorro seguia seu dono em silêncio. Nada urgente, tudo sereno.

Chegou à beira do campo abandonado onde, na infância, costumava empinar pipa. Sentou-se na pedra que guardava desde menino e ali ficou, ouvindo o vento dançar com as folhas secas. O tempo pareceu se expandir.

Abriu o caderno. Escreveu apenas uma palavra: solitude.

Lembrou que ouvira esse termo certa vez, num livro velho de capa dura. Na época, achara que era só um jeito mais bonito de dizer solidão. Mas agora, ali sentado entre lembranças e brisas, entendia: solitude não era ausência. Era presença inteira — dele consigo mesmo.

Recordou os rostos que passaram, os lugares que buscou, os barulhos em que se escondeu. Tudo fazia sentido. Sempre estivera procurando isso: um momento em que o mundo não precisasse ser explicado, nem ele precisasse ser compreendido. Um instante em que bastasse apenas existir.

O sol começou a subir. As sombras se retraíam devagar. Ele fechou o caderno, sorriu pequeno e voltou pra casa sem pressa.

Daquele dia em diante, ninguém notou mudanças bruscas em sua rotina. Continuava a frequentar os mesmos lugares, dizer os mesmos “bom dia”, ouvir as mesmas histórias. Mas quem olhasse bem veria um detalhe novo em seu olhar: a leveza de quem, enfim, aprendeu a estar só — sem estar perdido.

E quando, de vez em quando, perguntavam por que andava tão sereno, ele apenas respondia:

— Descobri o silêncio de dentro. E fiz dele morada.

[*] Nota
A compreensão da solitude como estado profundo de presença interior ressoa com pensamentos filosóficos e místicos de diferentes tempos.

Platão, em sua alegoria da caverna, sugere que o verdadeiro conhecimento só se alcança ao nos libertarmos das sombras e encararmos a luz interior — um processo solitário e transformador.

Sócrates, por sua vez, defendia o “conhece-te a ti mesmo” como caminho para a sabedoria, implicando o mergulho no silêncio da própria alma.

Rumi, poeta sufista, via a solitude não como um vazio a ser temido, mas como um espaço fértil onde Deus sussurra verdades que o ruído do mundo abafa: “Aquieta-te, e a alma falará”.

Nietzsche entendia que o espírito livre só poderia emergir da solidão criadora, onde o indivíduo se desfaz das imposições sociais e escuta a si mesmo com coragem — “Aquele que não pode viver na solidão, não conhecerá a liberdade”.