O Caipira, o Caipora e o Cálice
Lembranças do dia em que o Afinado desafinou
Antes de a noite dar à luz ao Sol, Joca, caipira arguto e respeitado do interior da Província de São Paulo, acordava e logo lavava o rosto com a água da cisterna que ele mesmo havia cavado. Sua satisfação era ouvir o canto do Afinado seu galo de estimação e, também, contemplar os primeiros raios que aqueciam a terra e coloriam tudo ao seu redor.
Depois de um café que ele mesmo preparava e degustava, logo ia para a roça. O trabalho o esperava e nele não chegava atrasado, pois dizia que quem atrasa vive atrasando os outros. Joca carpia muito bem, plantava com atenção e colhia tudo cuidadosamente. Não era do tipo que fazia corpo mole. Também dizia que o salário mínimo que recebia era fruto de gente “miseravi” como ele costumava falar, gente que o explorava e que queria seu voto nas eleições. Mesmo assim, Joca tinha seu cantinho, sua horta, suas galinhas, dois pés de café, um pangaré e o Afinado.
Passado o outono chegou o inverno e chegou forte. Não havia neve, mas era como se houvesse. Joca precisava dormir com duas cobertas pesadas que ganhara do Carlim, um amigo mineiro que morava no Esmeril. Mas, mesmo com as cobertas Joca ainda sentia um pouco de frio.
Foi nesse inverno rigoroso, pouco tempo depois do Afinado cantar, que Joca ouviu alguém bater à sua porta. Desconfiado, saiu debaixo das cobertas mineiras e abriu-a com todo cuidado. Foi então que o visitante com um tom de voz familiar disse: “Joca! Lembra de mim? Sou o Caipora, estou de passagem. Deixei a roça como você sabe, fui tentar a vida na cidade grande, enriqueci e lá sou chamado de doutor.”
Joca perguntou: “Doutô?”. “Isso mesmo!”, respondeu o Caipora.
Joca continuou: “Óia, vô fazê um café prá nóis. Fali mais Caipora, descurpe, doutô, fali mais do lugá que foi morá, fali da cidadi grandi”.
Caipora então disse: “Olha Joca, na cidade grande não precisa trabalhar muito para ficar rico e ser chamado de doutor, basta ser esperto. O mundo é dos espertos Joca!”.
Joca perguntou: “E lá, ucê têm uns cumpãnhero bão?”
Caipora respondeu: “Companheiros bons são aqueles que apoiam minha esperteza”.
“E os que num apóia?”, Joca questionou.
“Tento de todo jeito e por todos os meios ganhar deles em toda disputa, azará-los, prejudicar seus negócios. Ver a derrota deles é minha recompensa”, respondeu o doutor em tom maquiavélico.
Joca então comentou: “Doutô, ainda me lembro do dia que foi prá cidadi grandi. Muita, genti, genti dimais chorô”.
Caipora indagou: “Por que fui para a cidade grande?”.
“Nãão!”, respondeu Joca.
“Por que então?”, perguntou Caipora curioso.
“Purque naqueli dia sumiu u cálice de ôro da Igreja”, disse Joca com ares visíveis de tristeza e inconformação.
“O cálice da Eucaristia?”, indagou Caipora de maneira bem desconfortável.
Joca exclamou em alto e bom som: “Sim! Sim! U benditu cálici da Eucaristia!”.
Caipora, mesmo muito bem agasalhado com seu casaco de vison começou a tremer tanto, mais tanto, que seu colar e pulseiras de ouro puro em seu corpo pareciam pipocas querendo saltar da panela.
Joca logo ofereceu café bem quentinho ao doutor que tremia muito. E no mesmo instante que Caipora tentava tomar o primeiro gole de café, o sacerdote da paróquia que, de quando em quando, visitava Joca bem cedinho chegou e logo foi convidado a entrar, tomar um café e conhecer o doutor. O sacerdote viu a tremedeira do visitante que chegara antes dele e dirigiu-lhe as seguintes palavras:
“Cuidado com a cafeína doutor!”.
Joca então disse ao sacerdote: Cuidadu cum u doutô!
De repente, o galo Afinado entrou no casebre, fitou o Caipora que continuava tremendo, cantou três vezes e desafinou nos três solos, o que jamais ocorrera antes. No terceiro e mais longo cocoricó, o Caipora gritou: “Cale-se!”. Aí Afinado ficou tão bravo que foi em sua direção, crina empinada e espora afiada.
O doutor saiu em disparada, entrou em seu carro de luxo e o Afinado o perseguiu pela estrada de terra até onde foi possível. Depois de recuperar o fôlego, Afinado voltou a cantar e não desafinou mais.
Para a surpresa do Joca e do sacerdote, o colar e as pulseiras de ouro usadas pelo Caipora espertalhão ficaram aos pés da mesa do café.
Disse então Joca ao vigário: “Vamu levá prá paróquia essi ôro. Se o Caipora não voltá aqui arrependidu até a Páscua qui logo vem, venda o ôro, faiz uma grande festa cum pão, azeite, vinho, mio, pêxe e cordero assado dus bão. Convide tuda gente da vila, fali que cum Deus num si brinca não e que a justicia Dele num fáia e nem a espora du Afinadu. Vai sê um festão. Vô levá o Afinado cumigo e ele vai ficá du meu ladu na mesa cum tuda gente que ama e cunfia no Fio di Deus, mesa dus agradicidu, mesa di Jesuis, nossu Senhô!”
O sacerdote olhou para Joca, olhou para o Afinado que olhava fixamente para ele e sem pestanejar concordou depressa. Joca e o sacerdote começaram a dançar sendo acompanhados pelo cocoricó do Afinado.
Depois da santa folia, Joca acordou seu pangaré, arriou o dorminhoco, colocou-o na charrete, e todos, inclusive o Afinado, nela se acomodaram. E assim, todos foram para a paróquia entoando canções, aquecidos pelo Sol que pintava com seus raios as mais lindas obras de arte ao longo do caminho.
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Tem humor com eloquência, muito gostoso de ler. Parabéns!
Conto envolvente e cheio da boa “mineirice” ou “mineirês! Salve a criatividade…