Fazia já alguns dias que haviam combinado assistir a Cinema Paradiso, porque havia muito burburinho; falava-se muito bem do filme. Escolheram ir naquela noite, no meio da semana, imaginando que haveria pouca gente e que seria tranquilo entrar. Foram ao Cine Arouche, que ficava perto da Vila Buarque, onde moravam.
Mesmo assim, encontraram o cinema cheio. Sentaram-se no meio da sala e ficaram esperando o filme começar. Viam grupos e pessoas solitárias nos bancos da frente e atrás deles — muitos conversavam baixinho, quando as luzes começaram a se apagar devagar, como se o tempo se preparasse para uma confissão.
Como num ritual, Franco e Mônica se afundaram nas poltronas, aquietaram-se, respiravam devagar, com o mesmo silêncio de todos — sombras de passagem, que veriam por uma única noite e nunca mais. A tela brilhou.
A primeira cena Franco nunca esqueceria. Num quarto escuro, o telefone toca na madrugada. Uma jovem mulher desperta, levanta-se e atende. A voz do outro lado pede por seu marido. Ele — Salvatore di Vita, um homem feito — ergue-se, atende, escuta em silêncio, desliga. A mulher pergunta, curiosa:
— Quem te ligou a esta hora?
Salvatore permanece sentado na cama, imóvel, olhando para baixo, pensativo. O telefonema traz uma notícia que nem poderia esperar para ser contada: a morte de um amigo. Ainda ignorava quem era o morto, nem o que significava sua ausência. Apenas sentia o peso daquela notícia, como quem pressente uma dor antiga.
Salvatore vivia em Roma, cercado de sucesso e distância, mas o telefonema o chamava de volta ao passado, ao lugar onde o tempo havia parado — Giancaldo, uma vila siciliana de pedra e poeira. A viagem para Giancaldo foi como uma travessia no tempo — da Roma urbana e moderna para uma vila quase desabitada, de ruas estreitas e muros gastos. Desde que partira, nunca mais havia voltado às origens nem às recordações.
Ali, entre lembranças, o projecionista Alfredo o esperava — tinha perdido a vida, mas estava presente no gesto de deixar-lhe uma caixa de lata, um rolo de filme, um testamento de afeto. Quando Salvatore abre o presente, o passado inteiro se ilumina.
Lembra-se do primeiro dia em que enganou a mãe para gastar, no ingresso do cinema, o dinheiro das compras no mercado. A cena é inesquecível: uma jovem mulher desce a rua, aflita, à procura do filho, e o encontra conversando com Alfredo na porta do cinema. As broncas, os tapas e a cobrança pelo dinheiro deixam Totò em apuros, até que Alfredo intervém para salvá-lo — diz ter encontrado uma quantia no chão da sala e a entrega à mãe, como se o menino a tivesse perdido. Nesse gesto, nascem a amizade e o amor pelo cinema — para sempre.
Foram muitas as vezes em que Totó foi ver filmes, mas Alfredo, cuidadoso, retirava as cenas de intimidade dos filmes adultos para que o menino pudesse assistir a toda a programação do Cinema Paradiso. Assim, foi esse o presente deixado: um rolo de película reunindo todos os fragmentos cortados — as cenas “inapropriadas” para crianças.
A luz do projetor desperta, então, uma chuva de beijos: são os pedaços de amor que Alfredo guardou, agora devolvidos como herança. Cada beijo é um reencontro, uma centelha da infância recuperada.
Franco olhou para a tela como quem reconhece algo perdido em si. Mônica, ao seu lado, segurava firme a bolsa no colo, o olhar preso àquele feixe de luz que cortava a escuridão.
Recordaram — sem saber que recordavam — a infância, as mães que ralhavam por pequenas travessuras, o dinheiro gasto no que parecia inútil. Lá na tela, a mãe de Totò o procurava pelas ruelas, aflita, e o projecionista, bondoso, devolvia-lhe um valor “encontrado” no chão. O gesto simples fundava uma amizade que atravessaria o tempo. Totò cresce, parte, vence — mas o coração fica preso àquela cabine, àquele velho que lhe ensinou a ver o mundo pela fresta de luz que corta o escuro.
Na sala de cinema, as lágrimas começaram a cair antes mesmo do fim. Um soluço tímido à frente, outro mais atrás, e logo a emoção se espalhou como chuva em telhado. Franco sentiu o nó na garganta querendo sair para fora; Mônica baixou a cabeça, e o silêncio entre os dois se encheu de algo que estava implícito.
Quando as luzes se acenderam, levantaram-se devagar. Nessa meia-noite, a rua do Largo do Arouche, no centro de São Paulo, parecia mais fria, como se a realidade tivesse perdido cor. Entraram no carro sem trocar palavra, e foi ali — sem aviso — que Franco desabou num choro convulso, gritos desses que vêm do fundo da alma. Chorava por Totò, por Alfredo, por ele mesmo.
Há filmes que continuam a rodar enquanto a tela escurece. Eles continuam, projetados dentro da gente. Cinema Paradiso foi um desses. Um tributo à memória, à amizade, à pureza do primeiro olhar. Ainda, talvez, uma lembrança de que todos nós — em algum momento — fomos aquele menino diante da tela, aprendendo a amar a vida através da luz. Porque o filme toca no ponto mais vulnerável da alma: o instante em que a inocência se despede — e, ao mesmo tempo, é devolvida pela arte.
O que há em Cinema Paradiso é um espelho delicado do que somos quando amamos o que se perde. Alfredo e Totò vivem uma relação de mestre e aprendiz, mas o que vibra ali é o amor puro entre gerações: o laço entre quem ensina e quem aprende a ver o mundo com encantamento. Quando o rolo final é projetado — aquela colagem de beijos arrancados pela censura —, o espectador reencontra mais que o cinema, mas tudo o que o tempo levou: infância, ternura, o primeiro arrebatamento.
O choro de Franco, no carro, foi mais que pelo Totò ou por Alfredo. Foi por si mesmo. Pela criança que um dia ficou extasiada diante da luz de um projetor e, sem perceber, começou a amar a beleza e a vida por meio da arte. Foi um choro de reconhecimento — o reencontro entre o homem e o menino que descobriu a eternidade nas imagens. O berro veio pelo significado da amizade e cumplicidade que o tinha deixado indefeso. O filme desmonta o adulto que se construiu para suportar o tempo e devolve o ser que amava sem motivo, que chorava de beleza, que acreditava no gesto gratuito do afeto.
É isso que Cinema Paradiso faz: abre o peito e diz, sem palavras —
“O que você viveu ainda está aí, inteiro, esperando a luz voltar.”



