A cidade parecia uma carta marcada naquela noite. Nos altos prédios, telas mostravam mapas e linhas vermelhas que se cruzavam como veias; nas rádios internas, vozes militares recitavam ordens, calibradas ao segundo. Chamavam aquilo de “operacional integrado”. Dona Teresa chamava aquilo de assombro.

Antes do toque do primeiro clarão, já havia uma geografia de papel que decidiria quem viveria e quem não voltaria para casa. Em uma sala fria, um coronel apontou para o mapa:
— Setenta e cinco minutos para corte total dos acessos. Dois pelotões no setor A, blindados no B, helicópteros em padrão Alfa.

Do outro lado da mesa, um capitão resmungou:
— Isso vai expor civis.

O coronel bateu a caneta na mesa como se fosse um gongo.
— Eficiência é prioridade. Resultados medem carreira.

Lá embaixo, no morro, Teresa não conhecia mapas; conhecia passos. Conhecia o cheiro do café que o filho sempre queimava, os chinelos que ele deixava no corredor, a risada que ele dava quando tropeçava nas palavras.

Às oito da noite, Rafael saiu dizendo que voltaria cedo, que só ajudaria um amigo a recolher algumas tábuas. Às nove, a televisão anunciou que uma grande operação começaria à meia-noite. Às onze e cinquenta e nove, os moradores prenderam o fôlego.

O primeiro boato veio em ondas: houve prisões, houve troca de tiros, houve nove “chefes” mortos. A polícia falava em “alvos de alto valor”. Nasceu aí a linguagem que tornava a ausência aceitável, como se nomes e abraços pudessem ser substituídos por planilhas.

Quando o helicóptero rasgou o ar, Teresa sentiu o estômago descer. No comando, havia quem regulava a operação como um tabuleiro: drones sobrevoavam em círculos, transmitindo imagens aos monitores; nas colinas, homens com fuzis sincronizados avançavam em duplas, obedecendo a coordenadas.

Mas a coordenação, que deveria ser o seu pilar, estava rachada. Entre os que planejavam no térreo, havia pressa por resultados; entre os que subiam ao morro, havia medo e desacordo. Um comandante de rua, velho e com olhos fundos, recusou a ordem de ocupar uma casa sem verificação:
— Lá dentro pode ter mulher, criança.

Recebeu gritos ao rádio:
— Se está ali, é culpado. Cumpram o plano.

Outro, mais novo, murmurou para si mesmo:
— Estamos atirando em sombras para agradar manchetes.

No morro, a incerteza virou estratégia de opressão. Soldados erguiam barricadas; batidas eram filmadas e exibidas em tempo real. Portas eram arrombadas com pressa e sem procura criteriosa. Um vizinho que abriu a porta para perguntar o motivo foi algemado por desacato. Uma senhora idosa teve sua cozinha revirada; quando perguntou onde estavam as suas coisas, ouviu:
— Estamos aqui para fazer justiça.

Justiça que chegava com botas e lanternas.

Teresa ficou em silêncio, escondida atrás de uma cortina de pano grosso. O terror se movia em camadas: primeiro o barulho — estampidos curtos e precisos que pareciam retocar o mapa da noite; depois a tática — o modo como as paredes vibravam quando um blindado passava; por fim, a administração do medo — rádios transmitindo ordens de contenção, oficiais discutindo a necessidade de “resultado simbólico” para justificar a operação.

Quando Rafael finalmente voltou, foi como se a cidade se visse obrigada a prestar contas ao acaso. Ele entrou pela porta com os olhos grandes, a boca seca, as mãos tremendo. Havia marcas de sujeira nos dedos e uma ardência na garganta que vinha não só da fumaça, mas do que vira: corpos cobertos, pessoas chorando, vozes que imploravam nomes.

Perguntou, em voz baixa, se devia falar com um homem que o abordara para ver se ele “tinha ficha”. Teresa fez apenas o gesto de puxá-lo para perto, como se pudesse costurar de volta a pele rasgada da noite.

No dia seguinte, nas manchetes, havia números exatos: mortos, identificados, antecedentes. Cada estatística era servida com uma foto institucional — ternos, algemas, declarações de honra. Mas os rostos que não voltaram, as mães que apagaram da lista um filho que não respiraria mais, esses não cabiam em gráficos. Ninguém perguntava quem havia ficado para trás por engano; ninguém somava os olhos abertos demais, a loucura de um vizinho que ouviu passos e já não confiava em nada.

Teresa viu, do portão da frente, um coronel dando entrevista, a voz firme, os ombros retos, e pensou na mesa onde se planejou a noite anterior. Pensou nos homens ao redor do mapa, nas vozes que discordaram e aceitaram. Pensou que o plano fora de vidro: transparente nos objetivos, opaco nas consequências. E se perguntou quantas vidas cabiam em uma interseção de linhas vermelhas.

Rafael aos poucos aprendeu a não falar alto. Quando lhe perguntavam o que fizera naquela noite, dizia que ajudara a carregar tábuas e depois só andou sem rumo. Teresa sabia que ele mentia para não lembrar e para não serem convocados novamente — lembranças naquele lugar podiam ser chamadas de prova ou de suspeita.

Na mesa da sala de operações, no fim, contas foram apresentadas. Houve aplausos, um aperto de mãos, uma fotografia oficial para celebrar a “eficácia”. Mas na rua, em casas com janelas que ainda tremiam, o correto e o certo não cabiam mais nos mesmos termos. O desacordo entre aqueles que comandaram mostrou, para Teresa, que o problema não era apenas quem havia dado ordens; era o modo como a obrigação de produzir resultados transformara vidas em alvos.

Ela deixou, naquela noite e nas noites que se seguiram, uma vela acesa na janela. Não era oração, era aviso — para os que chegassem com mapas, para os que chegassem com pressa, para os que pensassem que linhas vermelhas apagavam abraços. Era um sinal de que ali havia pessoas vivas, memórias que não seriam computadas em relatórios.

E quando, de vez em quando, os helicópteros voltavam a rasgar o céu, Teresa apertava o terço e lembrava de uma palavra simples: responsabilidade. Não a palavra dos cartazes, mas a responsabilidade de quem planeja e escolhe, a responsabilidade de não transformar uma operação em balanço de carreira, de não trocar filhos por manchetes.

Rafael, ao adormecer nos braços da mãe, tremia menos do que a cidade. O plano havia passado, mas o vidro estilhaçado da confiança não se remendava com discursos. Havia diferenças entre comandantes e estratégias — e nenhuma delas trazia de volta os nomes que, por descuido ou conveniência, desapareceram naquele mapa.