Ele gostava de se sentar nas últimas carteiras da sala de aula, onde, via de regra, ficava a turma do fundão. Vangloriava-se, em alto e bom som, de que não gostava de ler e nem mesmo de escrever. Dizia sempre que se encontrava na escola com o objetivo de infernizar a vida dos professores.
Naquela época, eu tinha praticamente a mesma idade dos alunos do 2º ano do ensino médio, no período noturno, e já era professora, quando lecionei para eles a disciplina de Literatura. A turma era a H, uma classificação que nominava as salas na ordem alfabética, das turmas mais adiantadas para as turmas mais defasadas na aprendizagem, e contava com 42 alunos que repetiam a série.
A especialista da educação básica que me recebeu na escola fez o alerta de imediato: “Você será a quinta professora deles nessa disciplina. ”A turma é difícil, seja firme, não demonstre fraqueza.”
Fechei o semblante e entrei firme na sala, sendo atacada por buchas de papel. A indisciplina tomou conta do ambiente. Carteiras se arrastavam num barulho infernal. Não consegui abrir a boca. Gritei, bati na mesa com a mão e pedi para que me deixassem falar. Nada. A aula durou uma eternidade e não consegui me apresentar, nem tratar do conteúdo.
Daquela sala de aula, dirigi-me à Diretoria para entregar meu cargo. A diretora, que havia sido minha professora no Magistério, não aceitou meu pedido e me encorajou a tentar novamente: “Pense em como você desejaria que fosse a sua aula, lembre-se de quando era aluna.”
Fiquei pensando em como entrar na sala novamente depois do ocorrido. Busquei na memória a imagem da turma. Mesmo assustada com a desordem, consegui observá-los: risadas altas e nervosas, muita gesticulação, um empurra-empurra entre os alunos, vocabulário informal com muitos palavrões.
Perguntei aos demais colegas professores, que trabalhavam com a turma, como ministravam suas aulas. Ouvi vários relatos de histórias dos alunos que tinham uma vida muito sofrida. Olhei para meu caderno de aula (que era o mesmo caderno que minhas tias professoras antigas utilizavam), com passo a passo sobre o estilo literário Realismo/Naturalismo, e senti algo forte no meu coração. Minha aula não poderia reproduzir a mesma coisa que aqueles alunos vivenciaram nos anos anteriores, em que foram reprovados. Precisava encontrar outra estratégia para afetá-los de alguma forma.
Fui à Biblioteca Cura D’Ars, que funcionava na antiga cantina da escola, e comecei a procurar obras do Realismo/Naturalismo para levar para a sala. De repente, caiu da estante o livro As mil e uma noites. Abri um sorriso, pois me lembrei de Sherazade. Meu pensamento viajou por um instante!
É isso! Preciso instigá-los a levar o pensamento para outras possibilidades, algo que faça com que experimentem uma sensação diferente.
Ao entrar na turma H novamente, subi em cima da mesa do professor e comecei a contar a história de João Romão e Bertoleza, sem chamar a atenção de ninguém, nem gritar, nem bater na mesa. Apenas contava a história do livro O cortiço, sem parar, dramatizando as cenas. Quando percebi que a maioria prestava atenção em mim e estava com um sorriso leve no rosto, declarei:
— Quem quiser saber o final dessa história, venha na próxima aula com sugestões para a continuidade da história que iniciei. O que João Romão fez? Lutou por Bertoleza ou deu a ela outro destino? E qual seria esse outro destino?
E assim eu fiz todas as outras aulas. Contava uma história atrás da outra, como Sherazade. Só que eu não contava os finais; eles é que tinham que criar o final que entendessem melhor para a história.
Numa dessas aulas, havia ganhado o livro Madame Bovary e resolvi contar esta história para a turma.
Os alunos estavam eufóricos: uns defendendo a honra do marido, outros demonstrando empatia com a situação de Emma. Fiquei inquieta com a reação de Rony, meu aluno do fundão. Na sala de aula, seus comentários e brincadeiras eram polêmicos e a turma o respeitava — seja por ser imponente fisicamente e ter uma voz potente, ou pela rebeldia e indisciplina costumeiras. Mas, naquele dia, Rony ficou quieto no seu canto.
Ao sair da sala, ele me parou na porta e estendeu o braço, impedindo minha saída:
— Qual é o final dessa história da Emma?
Respondi que a regra combinada com a turma era que o final era a turma que criava. Ele não aceitou essa resposta e me pediu — dessa vez, educadamente:
— Fiquei curioso, queria saber o que aconteceu com ela. Caiu na lábia dos caras, né? Se ferrou.
Olhei nos olhos dele e disse:
— São histórias. Cada um tem a sua história. Qual seria a sua história?
E ele me respondeu:
— Você saberá. Você contará minha história.
Consegui vencer meu primeiro ano como professora, e essa cena com esse aluno me marcou profundamente.
Poucos anos depois, estava na mesma sala, porém no matutino, lecionando Literatura para a turma A da escola, quando, da janela, ouvi gritos:
— Professora, eu disse que você iria contar minha história!
Olhei pela janela e lá estava ele, num Escort conversível, vermelho, novinho. Ele me contou que mudou de vida, estudou e foi aprovado no concurso da PMMG. Quando o revejo pela cidade, nas festas tradicionais, passados mais de vinte anos, ele — o respeitado Tenente-Coronel — me olha com os mesmos olhos de então e sorri ao longe. Vez ou outra, num encontro desses, dispara:
— Professora! Que alegria sinto ao me lembrar das suas aulas. Recordo-me das histórias contadas e, por incrível que pareça, para quem não gostava de ler e escrever, uso uma ou outra história em meus discursos. Outro dia, citei até Miguel de Cervantes, acredita? Tornei-me também discípulo da Sherazade.