Seria ela uma estrela? Se for, é das mais refulgentes! Talvez uma constelação? Até caberia. Uma galáxia? Por que não? Preferimos caracterizar Clarice Lispector como uma entidade que, um dia, por algum motivo qualquer, desceu para iluminar esta humanidade confusa com a fartura de sua produção literária.
Neste momento, preconizamos um aspecto dos mais significativos da autora, por ser dialético, não idealista, e por ser também, aparentemente, incongruente. Referenciamos a estrela como alguém que tinha uma solaridade intrínseca, uma iridescência rara e invulgar. Mas nos enganamos.
Lendo sua biografia, constatamos um ser-mulher recatada, introspectiva e, por demais, retraída. Parecia estar sempre à procura de algo que jamais encontraria: o Eu Existencial. Porque o factual ela já conhecia… Por isso travava enormes litígios internos e escrevia tanto, buscando nas entrelinhas a resposta para a pergunta essencial: quem era Clarice Lispector?
Só então compreendemos por que ela gostava tanto do escuro.
Alguns exemplos oportunos: Sérgio, nosso amigo de estudo, estava escrevendo sua tese sobre ninguém menos que Clarice Lispector. Confessou-nos que, com muita insistência, a escritora decidiu recebê-lo. Lá se foi Sérgio, com muito medo, porque não sabia o que poderia encontrar. Eles conversaram bastante, mas ele percebia o afastamento automático de Clarice.
O melhor da história vem agora. Começaram na claridade, com o sol entrando pelas frestas da sala. O tempo foi passando… passando… até que o espaço ficou completamente escuro, um breu tenebroso. Ela não acendeu as luzes até o final da conversa. O medo de Sérgio virou pavor – ele não enxergava mais a mulher, mas, no lugar dela, um espectro.
Aliás, os boatos parecem ser fatos, pois há muito tempo ouço dizer que Clarice nunca acendia as luzes ao anoitecer.
Aproveitando a oportunidade, vamos a mais uma das esquisitices da artista. Ela criticou veementemente Lygia Fagundes Telles:
— Lygia, você está cometendo um suicídio involuntário. Mulher não pode sorrir, nem rir, NUNCA, principalmente na frente dos homens. Eles não respeitam a mulher que ri. Julgam-na burra e vulgar. Se gargalhar, então? Coitada: além de tudo, prostituta.
Coisas do feminino encurralado há séculos.
A entidade Haya Pinkhasovna Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, em 1920. Faleceu no ano de 1977, na cidade do Rio de Janeiro.
Ela se aventurava em ultrajar o sentido fragmentário do instante. Mais uma vez, um sinal de estranheza, de exotismo e de assombro se fez revelar. Clarice aspirava trancar a instantaneidade do momento para que o tempo não escapasse. O que nos leva à reflexão sobre o viver e o morrer em Lispector.
Seria ela uma identidade perdida? Um EU nublado? Dúbia na própria personalidade? Um ser obscuro, incomum e irregular?
De uma coisa temos certeza: era uma mulher completamente à frente de seu tempo.
Não nos importam as estranhezas, as bizarrices, os comportamentos insólitos de Clarice Lispector. Ela era infinitamente maior do que isso. O que importa mesmo são as contribuições que nos deixou com seus escritos: o aprimoramento da identidade humana, o apaziguamento das almas perturbadas e o florescer incapturável das sensibilidades.
Tenho a impressão de que Lispector era só nervos escorchados tremendo sobre o colchão, no qual, inadvertidamente, pôs fogo com o cigarro. É claro que dormiu com ele aceso.
Depois desse outro fato surpreendente, reitero haver na escritora dezenas de Clarices.
Não obstante, duas delas já servem para justificar a exemplaridade de um ser humano singular. A primeira, a percepção que temos de uma Clarice meio criança, que faz peraltices sem pensar. A segunda dispensa comentários. Basta lermos algumas reflexões de sua literatura para comprovarmos uma espantosa genialidade:
“Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive, inicialmente, uma visão lunar e lúcida, então prendi para mim o instante antes que ele escapasse e me levasse embora perpetuamente.”
Como a vida é estranhamente bela!
É incrível perceber que a mesma “menininha” que lia e escrevia na escuridão trevática de um quarto; que dizia para a amiga que mulher não podia rir na presença dos homens; que quase incendiou a casa por dormir com o cigarro aceso, deixa marcado no solo indestrutível do tempo coisas assim:
“Em mim, a vida é profunda. As madrugadas vêm me encontrar pálida de ter vivido a noite dos sonhos fundos.”
“Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.”
“Uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes, só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra.”
“Assim é o eterno: não começa, nem termina. Ouve-me, ouve meu silêncio. Estou falando da força de corpo nas águas do mundo.”
Quem esparrama talento e sensibilidade com versos de tamanha sublimidade é perdoado por princípio!
Portanto, Clarice tinha todo o direito de ser obscura, aberrante, inconclusa e esfíngica – aos olhos do mundo e de si própria.
A estrela resplandecia no infinito como plasma disforme. Fulgurou e reluziu na finitude da matéria. Retornou enovelada como a essência potente dos impulsos.
Estou boquiaberto! Mas será pela Clarice ou pela Marlene Fortuna, que escreveu este artigo? Pelas duas, sem dúvida. Eu desconhecia as intimidades e as excentricidades de Clarice que Marlene revelou aqui. Mas o que mais me fascina é a elaboração filosófica dessas passagens biográficas, a maneira como Marlene as transforma em pensamento, em literatura. Me senti mais próximo de Clarice através de Marlene, e agora quero ler mais textos da Marlene.
Ivo, agradeço o estímulo que oferece aos meus escritos. Depois de ler Clarice Lispector e vir o quanto ela sofreu com os homens (odiavam-na por ela ser culta, inteligente e maravilhosa escritora), sabe o que tenho a dizer a você? Parabéns, Gratidão e Admiração sem limite, por ser dos homens mais sensíveis, perscrutador invencível, inteligente e sagaz. Valoriza as mulheres, as autoras e o elemento feminino em seu todo. Ou seja, enxerga a mulher por dentro. Muito Obrigada. Você faz a diferença!!!