Há quem diga que os escritores são pessoas diferentes, como se vivessem e se comportassem de maneira “misteriosa”, incomum aos olhos do mundo. Parecem detentores de um jeito próprio de ser e viver e, sem se dar conta, seu modo de vida “extraordinário” pode virar assunto de curiosidade na vizinhança e entre aqueles que os cercam. Em especial, daqueles que ainda não desfrutam o bem viver sob o afago dos livros.

Seria verdade a impressão de que o escritor costuma ver e sentir os acontecimentos reais como se usasse uma lupa de visão detalhista? Teria ele um olhar clínico para todos os pormenores e minúcias? Um faro gentil para descobrir o subterrâneo e o invisível? Certamente que sim, arrisco dizer. O escritor enxerga longe. Olha o que ninguém vê. Ouve o que poucos se atrevem a escutar. Sente o que quase ninguém ousa tocar com a alma. E ainda carrega a destreza de descobrir o que há “por debaixo dos panos” das máscaras humanas. Sempre disposto a imaginar fundo. E a sonhar sonhos profundos, quase impossíveis de serem vividos.

Naquele dia, enquanto apontava o lápis para mais um dia de escrita, pensava nesse jeito de viver dos escritores, com o vigor das palavras. Por um instante, me vi diante de um deles, bem à vontade para puxar assunto, e logo fiz a primeira indagação:

— Como gosta de viver o escritor?

Busquei conhecê-lo de perto, para além de suas obras ou do calhamaço de páginas a inspirá-lo na gaveta. Interessava-me saber como sua vida se emoldura, como correm seus dias, seu viver cotidiano. Uma boa conversa, com respostas a perguntas comuns, habituais ao seu dia a dia. Coisas de escritor…

Começo dizendo que todo poeta (de prosa ou versos) parece ter um lugar preferido para escrever, para poder matutar e observar tudo à sua volta. Precisam, como ninguém, do simples: da paisagem da janela e sua gente lá fora ao vaivém dos rios e mares, ao gorjear dos pássaros e ao canto dos galos. Precisam de coisas simples assim, para poder dar vida às observações expressivas que fazem da realidade que os rodeia, degustando-a em fabulosas minúcias.

São maestros na arte de observar. E nascedouros de uma “forma especial de conhecimento do mundo e dos homens”, como afirmava Aristóteles em suas tentativas de conceituar “o que é literatura?”. Talvez por isso a predileção de muitos deles pelo sossego dos lugares pequeninos, das ruelas de pedras, dos lugarejos interioranos de casas simples e rústicas, escolhendo-os como morada. Por vezes, preferem o campo à cidade; o sítio às gigantescas fileiras de apartamentos; o sacolejo dos caminhos de barro à velocidade dos asfaltos; os jardins a céu aberto aos muros de cercas elétricas…

Não resta dúvida de quanto apreciam o silêncio. Precisam dele, ao que parece, para dar suas impressões ao comum, ao imperceptível, ao inexpressivo, à nossa linguagem e à nossa visão. Afinal, vivemos sob “percepções e reações à realidade embotadas, apagadas ou automatizadas”, como constatam os formalistas russos e Terry Eagleton em sua obra Teoria da Literatura – Uma Introdução, ao nos concederem entendimento sobre o “literário”. Dar expressividade ao mundo parece-me o alicerce primordial do trabalho do escritor. Com seu jeito único de lidar com a estética verbal para falar sobre tudo, acreditam que tudo é “matéria de poesia” (passível de ser escrito com a expressão artística de cada língua-mãe), como nos ensinaram Antônio Cândido e Aderaldo Castello em suas reflexões sobre a força da palavra literária e seu surpreendente papel de miragem de tudo o que existe.

Ali, de onde sempre costuma estar, sentado em seu gabinete ou diante de sua escrivaninha (não podemos esquecer dos escritores que preferem compor suas obras em pé ou deitados), ele aprecia, visita ou constrói mundos e vidas intocados — ou quase intocáveis. Escuta o que as letras têm a lhe dizer e leva-as ao papel com destreza. Não são poucas as vezes em que se pega tecendo linhas sobre o que lhe vem à cabeça, repentinamente. Nessas horas, corre com afinco para chegar a tempo de escrever, em qualquer nesga de papel encontrada pela frente.

O escritor pode escrever sobre muito do que nele se passa. E faz disso um embrulho para uma gama de suas histórias. Por vezes, se transfigura em mímesis, imitando ou representando suas próprias ações ou as de outros. Outras vezes, transforma a folha em branco em uma espécie de confessionário de segredos que não teria coragem de contar a “seu ninguém”.

Mas uma coisa é certa: nós, escritores, parecemos mesmo viver de um modo peculiar, inusitado, a nos distinguir na multidão. Caseiros ou quietos, discretos ou reservados, pouco ou muito afeitos às multidões. E até de poucos amigos, acreditem. Prezando pelo silêncio e por uma boa caneca de café, nem sempre somos desregrados, boêmios ou simpáticos aos alvoroços noturnos. Devo dizer que alguns de nós até costumamos deitar-nos e levantar-nos bem cedo, com apetite para a escrita já nas primeiras horas do amanhecer. Mas sempre haverá os insones, cuja quietude das madrugadas os instiga a suas melhores linhas, confessam.

Bem, é claro que ainda existem muitos sussurros e boatos sobre o viver dessa gente escritora, correndo por aí, à boca miúda. Mas prefiro lançá-los a você, que neste instante está aqui, debruçado sobre estas linhas. Leia. Sinta. Descubra. Talvez, ao fim, consiga delinear o verdadeiro escritor. E quem sabe, ao escrevê-lo, você também passe a viver a vida que ele mais gosta de viver.